Cinema Francês, Todos

Amélie Poulain: A revolução silenciosa dos pequenos gestos

O que acontece se a maior revolução do nosso tempo não for barulhenta, mas sim silenciosa, anônima e escondida em gestos triviais? Esta é a verdadeira provocação de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001), um filme que nos atrai com uma Paris perfeitamente colorida de vermelhos e verdes apenas para nos desarmar e sugerir algo muito mais profundo. Nós somos levados a acreditar que assistimos a um conto de fadas moderno, mas estamos diante de um manifesto sobre o poder individual em um mundo desencantado, um filme que nos mostra como o acolhimento e as pequenas gentilezas são, na verdade, os verdadeiros direcionadores de uma vida com significado. O filme nos mostra que a bondade calculada, a intervenção discreta na vida do outro, é uma forma potente de combater o cinismo e a solidão que definem a nossa era, transformando o ordinário em extraordinário. A direção de Jean-Pierre Jeunet utiliza o artifício, a extrema saturação das cores e a coreografia dos movimentos de câmera, não como um fim em si mesmo, mas como o veículo necessário para esta revolução silenciosa. A Paris que vemos não é real, e essa é exatamente a intenção, pois o filme opera no campo da possibilidade, do “e se?”. Nós observamos Amélie orquestrando suas intervenções, como o gnomo viajante que reconecta seu pai ao mundo ou a vingança meticulosa contra o quitandeiro Collignon, e percebemos que a estética de conto de fadas serve para proteger a fragilidade desses atos de pura gentileza. Em um mundo cínico e realista, talvez eles fossem inúteis, mas no universo de Amélie, eles ganham o peso de milagres seculares, provando que a mudança começa na menor das escalas. O filme captura, talvez melhor que qualquer outro do início do século XXI, o paradoxo da solidão na era da conexão. Amélie, assim como o “Homem de Vidro” Raymond Dufayel, é uma espectadora da vida, isolada por suas próprias neuroses e pelo medo do contato direto. A revolução que ela inicia é, primeiramente, uma forma de praticar o acolhimento sem se expor diretamente, de tocar o mundo através de um filtro seguro. O que nós testemunhamos é uma jornada terapêutica, onde os pequenos gestos de reparação que ela oferece aos outros, como o encontro arranjado entre Georgette e Joseph, são, na verdade, ensaios para sua própria cura, uma forma de usar a gentileza como ferramenta para entender o mundo antes de ousar participar dele. A maior prova de que não estamos apenas em um território de fantasia é o pavor que Amélie sente do contato direto, algo que um conto de fadas tradicional simplesmente ignoraria. A sua jornada com Nino e o álbum de fotos rasgadas é o ponto onde a revolução silenciosa precisa se tornar audível, onde o gesto precisa ser direcionado a si mesma. O filme argumenta que, embora possamos transformar o mundo ao nosso redor com intervenções anônimas, a felicidade completa exige o risco da vulnerabilidade, provando que a gentileza, para ser completa, precisa ser uma via de mão dupla. A estratégia dos pequenos gestos, tão eficaz para os outros, encontra seu limite, e ela precisa da ajuda de Dufayel, o homem que ela mesma ajudou, para entender que ela também merece o acolhimento que tanto distribui. Por fim, Amélie Poulain nos deixa com uma lição de poder que é frequentemente esquecida na nossa busca por soluções grandiosas. Nós somos lembrados de que o acolhimento e a gentileza, mesmo quando disfarçados de travessura, são uma força política. O filme de Jeunet celebra a ideia radical de que o mundo não é mudado por grandes eventos, mas pela soma impossível de calcular de ações minúsculas, anônimas e profundamente humanas. A revolução de Amélie é silenciosa porque não precisa de palcos ou discursos, ela apenas precisa acontecer, um gesto de cada vez, provando que a gentileza pode ser a forma mais potente de fazer do mundo um lugar melhor. Dedicado ao meu amigo Paulo Alves, cujos gestos gentis são luzes aos meus dias escuros.

Cinema Espanhol

Almodóvar, gazpacho e o telefone que não toca

Uma mulher que dubla filmes românticos vê sua própria vida amorosa desmoronar através da frieza de uma mensagem na secretária eletrônica. Esta é a ironia central que move “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), uma obra onde Pedro Almodóvar nos joga diretamente no olho do furacão da paixão desfeita, mostrando que o romantismo, quando levado ao extremo, se parece menos com um sonho e mais com uma farsa caótica e desesperada. O filme inteiro é a crônica de uma espera, a tentativa febril de Pepa em conseguir um último encontro, uma explicação final de Iván, o amante que desaparece e se torna um fantasma onipresente, e nessa busca nós somos arrastados para a comédia mais dolorosa que se pode imaginar sobre o fim de um amor. O apartamento de Pepa transforma-se no epicentro onde todos os tipos de desastres românticos colidem, provando que sua dor não é única, mas parte de uma condição feminina universal diante da covardia masculina. O enredo avança não por lógica, mas por uma sucessão de interrupções e acidentes, desde a amiga Candela, que busca refúgio após se envolver romanticamente com um terrorista, até o filho de Iván, Carlos, que aparece com sua noiva esnobe, Marisa, para alugar o apartamento que Pepa mal consegue deixar. O que nós vemos é como a vida de Pepa é invadida, e cada nova personagem que entra pela porta traz consigo sua própria bagagem de fracasso afetivo, criando um espelho multifacetado do sofrimento da protagonista, onde o telefone, símbolo da conexão romântica, torna-se o principal vilão que se recusa a entregar a voz do amado. O filme inteiro é construído sobre a ausência de Iván, o arquétipo do sedutor que só existe como uma voz aveludada, uma promessa vazia que deixa um rastro de destruição emocional. Almodóvar é cirúrgico ao desmontar a figura do amante romântico, pois Iván é, na verdade, um covarde que foge de todas as suas responsabilidades, seja com Pepa, com sua ex-mulher Lucía, ou com o próprio filho. O romantismo aqui é exposto como uma doença, uma obsessão que leva Lucía à loucura literal, esperando por ele por décadas após ser abandonada, e que quase consome Pepa em sua caçada por respostas. Nós assistimos a uma luta desesperada não pelo amor em si, mas pela dignidade de ter um encerramento, de poder olhar nos olhos de quem partiu. A famosa cena do gazpacho batizado com soníferos é o ponto de virada onde o desespero romântico se transforma em ação, ainda que completamente imprudente. É a comédia física substituindo o choro, a tentativa de Pepa de colocar ordem no caos anestesiando temporariamente todos ao redor, incluindo os policiais que investigam sua amiga. O clímax no aeroporto, com Lucía armada e pronta para matar Iván, é a explosão final desse romantismo doentio, a paixão transformada em fúria homicida. Pepa, ao salvar o homem que a destruiu, não o faz por amor, mas por um senso de justiça final, um ato que finalmente a liberta da espera e da obsessão que a definiram durante todo o filme. O que a Academia de Hollywood viu, talvez pela primeira vez de forma tão clara na obra do diretor, foi a precisão desse caos meticulosamente controlado. Almodóvar pega o gênero do “melodrama de mulher”, muitas vezes relegado ao segundo escalão, e o injeta com uma irreverência punk e uma paleta de cores pop que o elevam. A indicação ao Oscar não foi um prêmio apenas para a Espanha ou para uma comédia excêntrica, mas sim um reconhecimento de que Almodóvar havia criado uma linguagem universal, uma forma de usar a superfície artificial do cinema para falar sobre as verdades mais profundas da solidão, do abandono e da resiliência feminina no mundo contemporâneo. No final, o que Almodóvar nos mostra é que a cura para o desastre romântico não está em um novo amor ou no retorno do antigo, mas no próprio esgotamento da obsessão. A calma que encontramos em Pepa no terraço, naquela cena final onde ela finalmente revela sua gravidez e conversa com Marisa, não é a paz de um amor resolvido, mas sim a tranquilidade de quem atravessou o fogo e sobreviveu ao colapso. “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” usa o enredo de uma busca romântica obsessiva para nos dizer que, no fim das contas, a única liberdade verdadeira nasce no momento em que a espera finalmente acaba e o futuro, pela primeira vez, pertence apenas a nós mesmos.

Cinema Americano, Todos

A essência do amor no caos

E se pudéssemos apagar a dor de um amor perdido como quem deleta um arquivo corrompido do computador, nos livrando de toda a angústia para recomeçar com uma tela em branco? Essa é a promessa tentadora que move a jornada de Joel Barish em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), um filme que, ao explorar a tecnologia da amnésia seletiva, nos revela uma verdade paradoxal e profundamente humana, a de que a verdadeira essência do amor não reside na perfeição ou na ausência de dor, mas precisamente no caos inseparável das memórias que tecem uma conexão real. A tentativa de Joel de impor uma ordem clínica ao seu sofrimento o lança numa odisseia desesperada pelo labirinto de sua própria mente, onde ele descobre que cada momento de felicidade com Clementine está irremediavelmente soldado a um instante de frustração, e que a tentativa de apagar um significa aniquilar o outro. A direção de Michel Gondry transforma o cenário mental de Joel em uma paisagem viva e em desintegração, utilizando uma gramática visual que é a própria manifestação do caos da memória. Nós somos jogados em cenas que se dissolvem, em cenários que encolhem e em conversas que ecoam fora de sincronia, não como um mero artifício estilístico, mas como a representação fiel de como a memória afetiva realmente funciona, um emaranhado de sensações, fragmentos e emoções que se sobrepõem sem qualquer lógica linear.  A cinematografia instável e os efeitos práticos nos forçam a sentir a desorientação de Joel enquanto ele percebe que suas lembranças não são arquivos organizados em pastas, mas um ecossistema vivo e interdependente, onde a alegria de um dia na neve sobre o rio congelado só existe porque também existe a amargura de uma briga banal na volta para casa, e é nessa totalidade confusa que a alma do relacionamento deles respira. A jornada de Joel se transforma, então, em uma rebelião contra sua própria decisão, uma corrida frenética para salvar Clementine do apagamento que ele mesmo contratou.  É nesse momento que o filme aprofunda sua tese, pois ao tentar esconder sua amada nos recantos mais absurdos de sua mente, como em memórias de infância onde ela não pertence, Joel não está apenas salvando a imagem dela, mas sim a integridade de sua própria identidade. Nós compreendemos que as experiências dolorosas, as falhas de comunicação e as imperfeições de Clementine não eram bugs no sistema de seu amor, mas características essenciais que o tornavam único e valioso.  A dor, nesse contexto, deixa de ser um inimigo a ser eliminado e se revela como o tecido conjuntivo que dá profundidade e significado à alegria, provando que um amor sem suas cicatrizes é apenas uma abstração vazia. Ao nos apresentar essa narrativa, o filme se conecta a um debate filosófico atemporal sobre a natureza do ser e a importância da experiência acumulada, dialogando com a ideia de que somos a soma de nossas vivências, tanto as gloriosas quanto as miseráveis.  Em uma sociedade cada vez mais obcecada por soluções rápidas e pela fuga do desconforto, a história de Joel e Clementine serve como um poderoso manifesto contra a cultura da assepsia emocional, nos lembrando que a complexidade e a contradição não são falhas a serem corrigidas, mas a própria matéria-prima da vida e dos laços que formamos. O procedimento, que promete paz, na verdade oferece o vazio, e a resistência de Joel é a afirmação de que uma vida com a memória da dor é infinitamente mais rica do que uma existência sem memória alguma. O verdadeiro brilho do filme, e a confirmação final de sua tese, reside em sua conclusão agridoce e corajosa, quando Joel e Clementine, agora cientes de todo o caos que seu relacionamento pode gerar novamente, decidem conscientemente tentar mais uma vez. Aquele “ok” trocado entre os dois não é um sinal de otimismo ingênuo, mas um ato de aceitação radical, um reconhecimento de que o amor verdadeiro não é encontrar a pessoa perfeita, mas abraçar a jornada imperfeita com a pessoa escolhida.  Eles escolhem o caos em vez da ordem estéril, a possibilidade da dor em vez da segurança do nada, e ao fazerem isso, nos ensinam que a essência do amor é, no fim das contas, a disposição para navegar repetidamente pela desordem, encontrando beleza não apesar das falhas, mas por causa delas.

Cinema Brasileiro

Silvio Tendler: A utopia não como um grande projeto político, mas como uma busca diária

Silvio Tendler, o cineasta dos sonhos interrompidos, nos deixou, e com ele talvez se encerre um capítulo na maneira como o Brasil aprendeu a confrontar seus fantasmas na tela do cinema. Diante da notícia de sua morte, nós somos convidados a revisitar sua imensa obra não mais apenas como um inventário das grandes derrotas políticas, mas como um testamento luminoso sobre uma forma mais resiliente e talvez mais verdadeira de esperança. O que seus filmes nos ensinam, e o que sua própria vida de dedicação confirma, é que a utopia talvez nunca tenha sido um grande projeto político a ser alcançado no fim da história, mas sim uma busca teimosa, diária e incansável, travada nos gestos de lembrar, de pensar e de resistir. Nós nos acostumamos a ver seus documentários, como em “Jango” (1984) ou “Os Anos JK” (1980), como mártires de projetos nacionais, cujas visões de país foram esmagadas pela engrenagem da história. A lente de Silvio Tendler nos oferece algo mais profundo do que a simples melancolia do que foi perdido. Ao mergulhar nos arquivos, ele não resgatava apenas o plano de governo ou o discurso final, mas a pulsação do cotidiano daquelas buscas, a energia dos comícios, a seriedade das reuniões, a fé anônima de milhares de pessoas que participavam daquela construção diária. A utopia ali retratada não era o Brasil prometido por Juscelino ou as Reformas de Base de João Goulart, mas o próprio ato de acreditar e trabalhar coletivamente por elas, a prática diária de construir um futuro que, mesmo nunca tendo chegado por inteiro, existiu vibrantemente em cada um daqueles dias. Essa busca por uma utopia cotidiana se torna ainda mais clara quando Silvio Tendler afasta sua câmera dos palácios do poder para focar na força do pensamento, como fez em “Encontro com Milton Santos” (2006). Ali, nós descobrimos que a construção de um Brasil melhor não dependia apenas de um líder ou de um partido, mas do exercício diário e rigoroso da inteligência, da capacidade de ver o mundo a partir de nossa própria perspectiva. A utopia de Milton Santos, e por extensão a que Silvio Tendler nos apresenta, é a soberania intelectual, a pequena revolução que acontece quando nós ousamos analisar a globalização a partir do lado de cá, transformando o conhecimento em uma ferramenta de libertação. É a prova de que a busca por um mundo mais justo também é travada na solidão de uma biblioteca, na formulação de uma nova ideia, no ato de ensinar e aprender. Na verdade, a própria vida de Silvio Tendler foi a mais perfeita tradução dessa utopia praticada no dia a dia, pois seu grande projeto foi o próprio cinema. Sua militância não se deu em palanques, mas na ilha de edição, sua arma foi a câmera e sua trincheira foi a sala de arquivos, onde ele travou uma batalha diária e obstinada contra o esquecimento, o inimigo maior de qualquer projeto de futuro. Cada filme que ele nos entregou foi uma vitória, um fragmento de utopia concretizado, uma peça de memória salva da erosão do tempo e do revisionismo, e ao fazer isso, ele nos convidava a participar dessa mesma busca, a nos tornarmos, junto com ele, guardiões de nossas próprias histórias. Agora que o artífice da memória se tornou ele mesmo memória, nós compreendemos que seu legado não é um mapa para uma terra prometida que nunca alcançamos, mas um diário de bordo de uma jornada que não pode parar. Silvio Tendler nos mostrou que os grandes projetos podem ruir, os heróis podem tombar e a frustração pode parecer o sentimento definitivo, mas a busca pela utopia sobrevive nos atos cotidianos de quem se recusa a esquecer, de quem insiste em pensar e de quem continua, contra todas as evidências, a construir o amanhã, hoje. Sua obra e sua vida se fundem nesse ensinamento final, uma homenagem não aos sonhos que morreram, mas à teimosia imortal de continuar sonhando. Silvio Tendler foi, sem dúvida, um de nossos imprescindíveis, tal qual diria Brecht.

Cinema Italiano, Todos

“O Evangelho Segundo São Mateus”: A heresia sagrada de Pasolini e o retrato de um Jesus Revolucionário

Queria trazer aqui uma reflexão: talvez a heresia mais profunda seja aquela que nasce não da negação, mas de uma fidelidade tão literal e feroz que se torna perigosa para a própria ortodoxia? Este é o terreno onde Pier Paolo Pasolini, um poeta marxista e ateu, ergueu seu monumento cinematográfico, “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964), um filme que se recusa a tratar Cristo como uma figura de vitral e o devolve à poeira da história como um revolucionário como nunca se viu na história da humanidade. A grandiosa heresia sagrada de Pasolini consiste precisamente nisto: em desnudar o evangelho de séculos de verniz dogmático para nos mostrar que a mensagem de Jesus, quando levada a sério, é menos um consolo para a alma e mais um chamado radical à insurreição contra a ordem estabelecida. Para Pasolini, a revolução de Cristo não poderia ser filmada nos estúdios de Hollywood, mas sim nas paisagens áridas e pobres do sul da Itália, utilizando como atores os rostos sofridos de camponeses e operários locais. Nós somos confrontados não com a beleza idealizada de um messias europeu, mas com a figura intensa e por vezes ríspida de um homem do povo, cuja santidade emana diretamente de sua imersão na miséria humana. A câmera, quase sempre na mão e seguindo a estética do neorrealismo, não busca a composição perfeita ou o enquadramento divino, mas a verdade crua do momento, capturando a fúria nos olhos de Jesus ao expulsar os vendilhões do templo como se fosse a raiva de um líder sindical contra os exploradores de sua gente. A escolha por essa estética não é um mero artifício, mas o próprio argumento do filme, pois ao situar a narrativa sagrada na realidade material do subproletariado, Pasolini nos obriga a enxergar o evangelho como um manifesto político pela libertação dos oprimidos. Esta abordagem se conecta de maneira visceral com todo o projeto intelectual e artístico de seu diretor, um homem que passou a vida obcecado pelas culturas marginalizadas, vendo nelas uma pureza e uma força espiritual que o mundo burguês havia destruído. Em Jesus, Pasolini não encontrou a figura fundadora da Igreja Católica com a qual mantinha uma relação de profundo antagonismo, mas sim o último expoente de um mundo místico e popular, um profeta cuja pregação contra a riqueza e o poder ecoava as suas próprias convicções marxistas. Dessa forma o filme se torna um ato de apropriação ousado, um resgate do Cristo histórico para o lugar dos grandes rebeldes da humanidade, transformando o Sermão da Montanha menos numa promessa celestial e mais num programa terreno de justiça social, onde os pobres não são apenas bem-aventurados, mas os verdadeiros agentes da transformação histórica. A genialidade de Pasolini se revela ainda na forma como a trilha sonora universaliza essa luta específica, criando sons que transcendem o tempo e o espaço da Judeia antiga. Nós ouvimos a solenidade da Paixão Segundo São Mateus, de Bach, se misturando com a dor ancestral de um spiritual cantado por Odetta e com a vibração de uma missa congolesa, e nesse choque de culturas, percebemos que a história contada na tela não é um evento isolado. A jornada de Cristo, em sua fúria contra a hipocrisia e em sua defesa intransigente dos despossuídos, torna-se um arquétipo para todas as lutas por dignidade ao longo da história, conectando a Palestina do século I à América da segregação racial e à África pós-colonial. A música funciona como um argumento paralelo, afirmando que o espírito revolucionário encarnado por este Jesus é uma força universal e atemporal. Ao final, o que torna “O Evangelho Segundo São Mateus” uma obra tão duradoura e inquietante é justamente o fato de que sua fé não reside na divindade de Cristo, mas na potência subversiva de suas palavras. Pasolini, o não crente, acabou por realizar um dos filmes mais espiritualmente honestos sobre o tema porque se recusou a domesticar a figura de Jesus, preferindo abraçar sua complexidade como um homem cuja mensagem de amor era também uma declaração de guerra contra a injustiça. Nós somos deixados com a imagem de um Cristo que caminha pela terra não para nos salvar para outro mundo, mas para nos incitar a transformar radicalmente este, uma heresia que, paradoxalmente, talvez nos coloque mais perto do cerne da mensagem evangélica do que qualquer interpretação piedosa jamais conseguiu.

Cinema Americano

“Promessas de Um Mundo Novo”: Um réquiem para a infância e a paz perdida em Jerusalém

Para entender a tragédia de um conflito sem fim, às vezes é preciso abandonar os generais e os políticos e ouvir as crianças. É esse o gesto de uma simplicidade demolidora que faz de “Promessas de Um Mundo Novo” (2001) um dos documentários mais comoventes e politicamente potentes já realizados. O filme nos leva para o epicentro do conflito israelense-palestino, mas nos recusa o mapa geopolítico tradicional. Em vez disso, ele nos oferece um mapa dos corações de sete crianças que vivem a poucos quilômetros umas das outras, mas separadas por muros visíveis e invisíveis. Nós somos convidados a assistir não a um debate, mas a um réquiem, um lamento profundo pela inocência roubada e pela paz que parece cada vez mais uma promessa quebrada. O filme nos apresenta a seus jovens protagonistas e, através deles, nós vemos o conflito não como uma abstração, mas como o ar que se respira. Conhecemos os gêmeos seculares israelenses Yarko e Daniel, o colono judeu ortodoxo Moishe, e do lado palestino, Sanabel e Faraj do campo de refugiados de Deheishe, entre outros. Eles não são telas em branco. Suas falas já carregam o peso da história, as narrativas de dor, direito e desconfiança que aprenderam com suas famílias e comunidades. Nós vemos crianças que brincam e sonham como quaisquer outras, mas que também falam de postos de controle, prisões e direito divino à terra com uma naturalidade assombrosa. O luto do filme começa aqui, ao testemunhar uma infância que nunca teve a chance de ser neutra. A promessa de um mundo novo, o coração luminoso e frágil do documentário, se materializa quando o cineasta B.Z. Goldberg consegue organizar um encontro entre algumas das crianças de ambos os lados. Por um breve e mágico momento, os muros desabam. Yarko e Daniel cruzam para o campo de refugiados para conhecer Faraj e Sanabel. A estranheza inicial rapidamente dá lugar a uma conexão genuína, alimentada por jogos, comida e uma curiosidade mútua. Nós vemos a prova irrefutável de que, despida da retórica herdada, a humanidade compartilhada floresce de forma espontânea. Nesse encontro, a paz deixa de ser um conceito político e se torna uma tarde de risadas entre crianças. É a realidade externa que, de forma implacável, destrói essa ponte. Realizado durante o colapso dos acordos de paz e o início da Segunda Intifada, o filme captura como a escalada da violência torna a continuidade desses encontros impossível. A cena final com Faraj é talvez a mais desoladora. Ele, que se conectou tão bem com os meninos israelenses, afirma que não pode mais ser amigo deles enquanto seu povo não for livre. Sua decisão não é sobre ódio pessoal, é sobre uma consciência política dolorosa, a compreensão de que a amizade verdadeira exige uma igualdade que a ocupação lhe nega. Nós entendemos a tese mais triste do filme: o afeto individual, por mais sincero que seja, é esmagado sob o peso das estruturas do conflito. “Promessas de Um Mundo Novo” é um réquiem porque seu sentimento predominante é o de perda. Ele não oferece soluções, não aponta culpados, apenas nos senta ao lado de suas crianças e nos faz sentir o peso do mundo que elas herdaram. O filme chora pela paz que não veio, mas seu luto mais profundo é pela infância que foi sacrificada no altar de uma guerra de adultos. A promessa do título paira sobre o final do filme não como uma certeza, mas como a mais frágil e assombrada das esperanças. P.S.: Apesar de tê-lo incluído na categoria de produção cinematográfica americana, também houve coprodução palestina e israelense.

Cinema Italiano

“Por um Destino Insólito”: A Guerra dos Sexos e a sátira política na Ilha Deserta de Lina Wertmüller

Lina Wertmüller não nos convida a uma ilha deserta para falar de amor, mas para conduzir uma autópsia selvagem das relações de poder. Em “Por um Destino Insólito” (1974), o naufrágio que isola uma arrogante milionária capitalista e um rude marinheiro comunista é o ponto de partida para um dos mais ferozes e controversos experimentos sociais do cinema. A ilha se torna um laboratório onde a guerra dos sexos é, na verdade, a roupagem de uma sátira política mordaz sobre a luta de classes na Itália dos anos 70. Nós somos confrontados com uma farsa grotesca e provocadora que usa o desejo e a dominação para questionar se uma verdadeira revolução é sequer possível. No iate luxuoso que serve como palco para o primeiro ato, nós vemos a sociedade em seu estado “natural”. Raffaella, interpretada com uma perfeição glacial por Mariangela Melato, é a personificação da burguesia decadente, destilando um desprezo casual e cruel por tudo que considera inferior. Do outro lado está Gennarino, vivido por um Giancarlo Giannini em seu auge, o proletário do sul da Itália, orgulhoso, machista e fervendo de um ódio de classe que ele é forçado a engolir. As trocas de farpas entre eles não são apenas um conflito pessoal, são o eco da polarização política que rasgava a Itália, um microcosmo de ressentimento contido pelas frágeis regras da civilização. Quando o destino, de forma insólita, os joga em uma ilha deserta, essas regras evaporam. O dinheiro e o status social de Raffaella se tornam inúteis, enquanto as habilidades práticas de sobrevivência de Gennarino o coroam como o novo mestre absoluto. A inversão de poder é imediata e brutal. Ele não busca uma parceria igualitária, ele busca vingança. Nós o vemos forçando Raffaella a se submeter, humilhando-a e revertendo cada uma das microagressões que sofreu no iate. A revolução de Gennarino é primal e pessoal, uma fantasia de dominação que espelha a própria lógica opressora que ele sempre combateu. É nesse terreno que o filme entra em sua mais notória e debatida fase. A relação de mestre e escrava lentamente se transforma em uma forma de romance sadomasoquista. Raffaella, após ser “domada”, parece encontrar uma libertação perversa em sua submissão, apaixonando-se por seu captor. Wertmüller foi duramente criticada por essa virada, acusada de endossar uma fantasia misógina. Contudo, nós somos forçados a enxergar a alegoria política. O “amor” que floresce na ilha não é puro, é patológico, um sintoma da doença social. É a sugestão cínica de que a única maneira que a burguesia e o proletariado conseguem se relacionar intimamente é através de uma dinâmica de poder violenta, uma codependência doentia. O final pessimista confirma a tese de Wertmüller. Ao serem resgatados, a utopia selvagem da ilha se desintegra instantaneamente. De volta à civilização, as estruturas de poder originais se reafirmam com uma força implacável, e a promessa de um novo começo se revela uma ilusão. “Por um Destino Insólito” é uma sátira furiosa que se recusa a oferecer conforto ou esperança. A diretora usa a guerra dos sexos como um espelho para as neuroses da luta de classes, concluindo amargamente que, no fim, a revolução é impossível, tragada pela maré de um mundo que não pode ser reinventado.

Cinema Brasileiro

“O Bandido da Luz Vermelha”: O pop tropicalista que explodiu a narrativa policial e inventou o Cinema Marginal

Em 1968, enquanto o Brasil mergulhava na escuridão de seu mais duro ano de ditadura, o cinema de Rogério Sganzerla acendia um sinal de alerta, não vermelho de perigo, mas de um deboche anárquico e colorido. “O Bandido da Luz Vermelha” não é um filme, é uma colisão, um ato de terrorismo cinematográfico que pegou a história real de um criminoso de São Paulo e a usou como pretexto para explodir a narrativa policial e todas as convenções do bom gosto. Nós somos jogados em um liquidificador de referências pop, filosofia barata e caos urbano que deu à luz o Cinema Marginal, oferecendo o espelho mais radical e desesperado para um país à beira do abismo. Sganzerla demole completamente a estrutura do filme de gênero. A história do bandido que assalta mansões na Boca do Lixo é constantemente interrompida, subvertida e ridicularizada por um narrador onipresente, que soa como um radialista sensacionalista misturado com um profeta do apocalipse. Ele nos bombardeia com informações contraditórias, citações filosóficas e slogans publicitários, garantindo que nós nunca possamos nos sentir confortáveis ou imersos na trama. A montagem estilhaçada, a cacofonia de músicas que vão de jingles a clássicos, e o uso de letreiros de histórias em quadrinhos destroem qualquer possibilidade de realismo. O objetivo não é contar uma história, mas nos fazer sentir o caos de uma nação. Essa estética é a tradução perfeita do Tropicalismo para o cinema. Sganzerla devora e regurgita tudo, sem hierarquia. O filme é uma colagem de “lixo” cultural, misturando a iconografia dos filmes de gângster de Hollywood, a precariedade da produção nacional, o teatro do absurdo e a linguagem da publicidade. Ele não tenta criar uma arte “pura” ou “autêntica”, mas assume a condição de um país do terceiro mundo, um receptor de detritos culturais do primeiro mundo, e transforma essa contaminação em sua principal arma estética. Nós vemos a São Paulo de Sganzerla como uma selva de signos, uma metrópole do subdesenvolvimento onde tudo acontece ao mesmo tempo e nada faz sentido. Dentro dessa desordem, nasce um novo tipo de herói, ou melhor, de anti-herói. O Bandido da Luz Vermelha não é o revolucionário idealista do Cinema Novo, nem o bandido social com um código de honra. Ele é uma figura patética, um ator em seu próprio drama ridículo, um sintoma de uma sociedade doente. Sua famosa filosofia, “a gente está no terceiro mundo, quem não rouba não come”, não é um chamado à revolução, mas uma constatação cínica e desesperada. Ele é a encarnação do marginal, um indivíduo cuja única resposta possível à loucura do sistema é uma loucura ainda maior, uma rebelião individualista, performática e, em última análise, fadada ao fracasso. “O Bandido da Luz Vermelha” é o grande manifesto do Cinema Marginal porque transformou a precariedade em potência e o caos em discurso. No momento em que o regime militar impunha a ordem pela força, o filme de Sganzerla celebrava a desordem como a única verdade possível. Ele não ofereceu um projeto de nação, mas a crônica de seu delírio. Ao inventar uma linguagem cinematográfica para o Brasil que não se encaixava nos cartões-postais nem nos panfletos políticos, Sganzerla não apenas explodiu um gênero, mas abriu uma ferida na tela que, de certa forma, nunca mais cicatrizou.

Cinema Brasileiro

“Madame Satã”: A paixão, a arte e a reinvenção do corpo negro de Karim Aïnouz

O cinema de Karim Aïnouz em “Madame Satã” (2002) não se assiste com distância, ele nos agarra pelo colarinho e nos joga no calor, no suor e na fúria da Lapa dos anos 30. Este não é um filme biográfico convencional, é um mergulho sensorial na vida de João Francisco dos Santos, uma figura lendária do submundo carioca, e em sua explosiva transformação no artista Madame Satã. Através de uma atuação monumental de Lázaro Ramos, nós testemunhamos um ato de reinvenção radical, onde a arte e a paixão se tornam as ferramentas para forjar uma nova identidade para o corpo negro e queer, um corpo que se recusa a ser definido pela violência e pelo preconceito. Desde a primeira cena, nós somos confrontados com a fisicalidade brutal de João Francisco. Seu corpo, em um primeiro momento, é um campo de batalha. É o corpo de um lutador, um malandro, um homem negro que precisa ser temido para sobreviver em uma sociedade racista que o marginaliza. Ele usa a agressividade como armadura, uma performance de masculinidade que lhe garante respeito nas ruas violentas da Lapa. Karim Aïnouz nos força a sentir o peso e o poder desse corpo, sua capacidade de infligir dor, mas também a vulnerabilidade que essa couraça tenta esconder. É no caldeirão da Lapa que esse corpo começa a se revelar em suas múltiplas facetas. O bairro filmado por Aïnouz é um personagem vivo, um labirinto de quartos apertados, bordéis e bares noturnos, um refúgio para os desajustados. Nesse ambiente, João Francisco constrói sua própria família com a prostituta Laurita e o malandro Taboo, um triângulo afetivo e sexual complexo, movido por desejo, ciúme e uma profunda lealdade. Aqui, seu corpo deixa de ser apenas uma arma e se torna um lugar de paixão e afeto. Nós vemos sua ternura como figura paterna, sua sensualidade como amante de homens e mulheres, um corpo que flui entre as categorias que a sociedade tenta lhe impor. A reinvenção final, contudo, acontece através da arte. O grande sonho de João não é o crime ou a malandragem, mas o palco. O desejo de se tornar um artista de cabaré é a força que o move, a promessa de um lugar onde todas as suas contradições podem coexistir e se tornar belas. A transformação em Madame Satã é um ritual de libertação. Nós testemunhamos a maquiagem, o figurino, a criação de uma nova persona que não é um disfarce, mas a mais pura expressão de sua identidade. No palco, seu corpo não é mais definido pela cor ou pelo gênero, pela violência ou pela marginalidade. Ele se torna um instrumento de glamour, poder e autoafirmação. “Madame Satã” é, em sua essência, um filme sobre o poder de se criar. Karim Aïnouz não nos oferece um herói de moral impecável, mas uma força da natureza que se recusa a ser contida. A paixão que o inflama e a arte que o liberta são as armas que ele utiliza para reinventar seu próprio corpo e seu próprio destino. O filme é um testamento duradouro à resiliência e à criatividade, nos mostrando que, para aqueles a quem a sociedade nega um lugar, o ato mais revolucionário é subir em um palco e apresentar ao mundo, de forma deslumbrante e sem desculpas, exatamente quem se é.

Cinema Árabe

“Paradise Now”: O Thriller de Hany Abu-Assad que humanizou o dilema do Homem-Bomba

Acredito que a pergunta mais perigosa que o cinema pode fazer não é “o quê?”, mas “por quê?”. É essa interrogação incômoda e corajosa que o diretor Hany Abu-Assad coloca no coração de “Paradise Now” (2005). O filme nos leva para as 48 horas finais na vida de dois amigos de infância palestinos, Said e Khaled, enquanto se preparam para realizar um atentado suicida em Tel Aviv. Usando a estrutura de um thriller de suspense, Abu-Assad desmonta a caricatura monstruosa do terrorista e nos força a encarar o rosto desconfortavelmente humano por trás do ato. Nós somos levados a uma jornada que não busca a justificação, mas a compreensão, expondo a asfixiante confluência de desespero pessoal e opressão política que pode levar um homem ao precipício. A primeira e mais radical decisão do filme é nos apresentar a banalidade que antecede o horror. Said e Khaled não são fanáticos religiosos ou demônios ideológicos. São mecânicos, jovens que vivem uma vida de tédio e falta de perspectiva sob a ocupação na Cisjordânia. Nós os vemos consertando carros, lidando com clientes, trocando piadas. Essa imersão no cotidiano é a principal ferramenta de humanização do filme. Antes de nos mostrar os homens-bomba, Abu-Assad nos mostra os homens, com suas frustrações, lealdades e pequenos momentos de humor. A escolha pelo martírio não nasce em um vácuo de ódio, mas no solo de uma vida sem futuro. É a estrutura do thriller que injeta no filme uma tensão insuportável, espelhando a angústia dos protagonistas. A narrativa é construída sobre um relógio em contagem regressiva, desde os rituais de preparação, como o último jantar e a gravação dos vídeos de mártir, até a perigosa travessia para Israel. Quando a missão inicial falha e os dois amigos se separam, o suspense muda de natureza. A pergunta deixa de ser “eles vão conseguir?”, para se tornar “eles ainda querem conseguir?”. Sozinhos e fora do controle de sua célula, eles são forçados a confrontar individualmente suas convicções. Nós não torcemos pela bomba, mas ficamos presos no dilema deles, a cada encontro, a cada hesitação. O filme internaliza o conflito através da personagem de Suha, uma jovem que conheceu o pai de Said e que representa uma via alternativa, uma voz que prega a resistência sem violência. Ela confronta os amigos, questiona a lógica do martírio e os força a defender suas escolhas. É nesses diálogos que o “dilema” do título se torna explícito. Nós vemos que a decisão deles não é monolítica. Khaled vacila, enquanto a determinação de Said se revela enraizada não apenas na política, mas em uma profunda vergonha pessoal ligada a seu pai, um colaborador executado. O filme argumenta que o ato político extremo é também, e talvez principalmente, um ato de desespero pessoal. A genialidade de Hany Abu-Assad culmina na decisão de não nos mostrar a explosão. A cena final, um close-up no rosto de Said dentro do ônibus em Tel Aviv, é subitamente cortada para uma tela branca e silenciosa. O filme nos nega o espetáculo da violência, a catarse do horror. Ele nos recusa a imagem do terrorista e nos deixa para sempre com a imagem do homem. “Paradise Now” é um thriller político que se atreve a não dar respostas fáceis. Ao humanizar seus protagonistas, ele não diminui a atrocidade do ato, pelo contrário, ele amplifica a tragédia, mostrando que a raiz de um ato desumano pode ser uma desesperança terrivelmente humana.

Cinema Soviético e Russo

O Descongelamento emocional em “Moscou Não Acredita em Lágrimas”

O provérbio que dá nome ao filme é uma mentira, e a obra-prima de Vladimir Menshov passou duas horas e meia nos provando isso. “Moscou Não Acredita em Lágrimas” (1979) se apresenta com a dureza de um ditado popular sobre a resiliência estoica, mas o que ele entrega é um dos mais calorosos e humanos retratos da vida privada na União Soviética. Lançado em um período de estagnação política e social, o filme se tornou um fenômeno por oferecer algo que o cinema oficial raramente dava ao seu povo: a permissão para sentir. Nós acompanhamos a jornada de três mulheres ao longo de duas décadas e descobrimos, junto com elas, que a verdadeira força não está em reprimir a dor, mas em abraçar a própria vulnerabilidade. A história começa na Moscou otimista de 1958, em pleno Descongelamento de Khrushchev, um tempo de esperança e sonhos para as jovens Katerina, Lyudmila e Antonina. O filme captura a energia da época, mas rapidamente nos mostra o abismo entre o sonho e a realidade. A protagonista, Katerina, se apaixona, engravida e é cruelmente abandonada por um homem da elite de Moscou ao ter sua origem operária revelada. A primeira parte do filme termina com ela chorando sozinha em um banco de praça, com sua filha nos braços. Neste momento, nós somos levados a crer no provérbio. Moscou, a cidade das grandes promessas, parece de fato um lugar que esmaga os corações e não dá valor às lágrimas de uma mãe solteira. Vinte anos depois, a câmera nos reencontra com uma Katerina transformada. Ela é agora a diretora bem-sucedida de uma grande fábrica, uma mulher que venceu na vida por seus próprios méritos, o modelo da autossuficiência soviética. Ela construiu uma armadura de competência e força, a personificação da mulher que não precisa de um homem para triunfar. Contudo, Menshov habilmente nos revela as rachaduras nessa fachada. Nós vemos sua solidão em um apartamento moderno, mas vazio, suas relações amorosas fracassadas. O sucesso profissional, o grande ideal público, não preencheu o vazio de sua vida pessoal. A mulher que provou que Moscou estava errada ainda não encontrou a própria felicidade. É a chegada de Gosha, um operário charmoso e de princípios firmes, que inicia o verdadeiro descongelamento emocional. O romance entre dois adultos com cicatrizes da vida é o coração do filme. Suas discussões não são sobre o partido ou a ideologia, mas sobre os papéis de gênero, a insegurança dele diante do sucesso dela e o medo dela de ser vulnerável novamente. A obra se concentra no tecido da vida cotidiana, nas pequenas alegrias e nos conflitos íntimos que definem a experiência humana. O clímax emocional não é uma grande conquista profissional, mas a catarse de Katerina, que finalmente se permite desabar e chorar nos braços de Gosha após uma crise. Neste momento, nós entendemos a tese do filme: as lágrimas não são um sinal de fraqueza, mas de cura. O sucesso estrondoso de “Moscou Não Acredita em Lágrimas” dentro e fora da URSS foi a resposta de um público faminto por histórias que validassem suas vidas privadas. Em uma cultura que por décadas celebrou o sacrifício coletivo e o heroísmo estoico, o filme de Menshov foi um sopro de humanidade revolucionário. Ele argumentou que a busca pelo amor, a dor da traição e a alegria do reencontro eram tão ou mais importantes que as grandes narrativas do Estado. Ele ensinou que acreditar nas lágrimas não era se render, mas se reencontrar com a própria alma.

Cinema Brasileiro

“Macunaíma”: A antropofagia como espelho deformado e genial do Brasil

Para dar conta de um país sem caráter, o cinema precisou de um herói que fosse a sua imagem e semelhança. “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, não tenta nos oferecer um retrato idealizado ou coerente do Brasil, pelo contrário, ela mergulha de cabeça em nossas contradições e nos devolve um espelho quebrado, grotesco e absolutamente genial. O filme abraça o conceito modernista da antropofagia, a ideia de devorar todas as nossas influências culturais para criar algo novo, e o transforma em método. Nós somos convidados a um banquete cinematográfico que é ao mesmo tempo uma celebração e uma autópsia, a mais indigesta e honesta representação da identidade fraturada da nação. O protagonista, Macunaíma, não é um homem, é um apetite ambulante. O “herói sem nenhum caráter” nasce na Amazônia e sua jornada da selva para a cidade grande é movida por uma voracidade pura, seja por comida, sexo ou riqueza. Ele é preguiçoso, egoísta, esperto e ingênuo, uma encarnação de todos os nossos clichês e paradoxos. O próprio filme se comporta como seu herói. Ele devora sem critério a mitologia indígena, os ritos afro-brasileiros, a cultura de massa urbana, a pornochanchada e o cinema de vanguarda. Tudo é mastigado e regurgitado em uma colagem alucinante que recusa a lógica e a ordem, espelhando a formação sincrética do próprio Brasil. Realizado no período mais brutal da ditadura militar, o filme usa essa estrutura rapsódica como uma poderosa arma de alegoria política. A viagem de Macunaíma é uma descida ao coração de um país que vivia o “milagre econômico” à custa da violência e da desigualdade. O vilão, o gigante industrial Venceslau Pietro Pietra, é a personificação canibal do capitalismo selvagem e do poder autoritário, um monstro que literalmente come gente. Ao mesmo tempo, o retrato cômico e ineficaz dos guerrilheiros urbanos revela um profundo ceticismo em relação a todos os projetos de nação. Nós somos forçados a rir de nossa própria tragédia, uma estratégia de sobrevivência e crítica em um tempo onde a clareza podia custar a vida. A estética do filme, com suas cores berrantes, atuações teatrais e um tom que oscila entre a chanchada e o horror, é o que torna o espelho tão deformado e tão verdadeiro. Joaquim Pedro de Andrade recusa a beleza asséptica e o heroísmo fácil. A famosa cena em que Macunaíma, negro, se banha em uma fonte e emerge branco é a mais cruel e certeira sátira do mito da democracia racial e do desejo de branqueamento que assombra o país. O filme não tem pudor em nos mostrar um Brasil feio, mágico, violento e hilário, muitas vezes na mesma cena. Ele nos confronta com uma imagem que nós reconhecemos com desconforto e fascínio. Ao final, o ciclo antropofágico se completa. Após sua jornada, Macunaíma é devorado pela Iara, e o Brasil, de certa forma, consome a si mesmo. O legado de “Macunaíma” é o de um cinema que entendeu que, para dar conta do Brasil, era preciso abandonar a busca por uma essência pura. A única forma de nos refletir era devorar tudo o que somos, o sublime e o terrível, e apresentar o resultado sem tempero. É o espelho mais honesto que já tivemos, não porque mostra como somos, mas porque captura a impossibilidade de sermos uma coisa só.

Cinema Brasileiro

“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”: A doçura como revolução na descoberta do amor e da identidade

Em um mundo que frequentemente confunde barulho com força, o filme de Daniel Ribeiro nos ensina uma lição poderosa: a doçura pode ser a mais radical das revoluções. “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014) aborda a jornada de autodescoberta de um adolescente cego e gay não com o peso do melodrama ou da tragédia, mas com uma leveza e uma ternura que se revelam como um ato de profunda afirmação política. Nós somos apresentados a uma história que recusa os clichês da vitimização para celebrar a beleza universal do primeiro amor. A revolução de Ribeiro não está no grito, mas no sussurro, na delicadeza de um gesto, na coragem de imaginar um mundo onde a identidade pode florescer sem a necessidade de uma batalha épica. O ponto de partida do filme é o desejo universal por autonomia. O anseio de Leonardo, nosso protagonista, de “voltar sozinho” para casa é muito mais do que uma questão de logística, é o seu grito silencioso por independência. Sua cegueira não é apresentada como uma sentença, mas como a circunstância que intensifica sua luta contra a superproteção dos pais e a dependência de sua melhor amiga, Giovana. Ao nos conectar primeiro com essa busca por espaço, o filme nos torna cúmplices de Leonardo, fazendo com que sua jornada de descoberta sexual e amorosa seja uma consequência natural de seu amadurecimento como indivíduo. A chegada de Gabriel, o aluno novo, catalisa essa transformação e redefine o universo sensorial do filme. Como Leonardo não pode ver, a câmera de Ribeiro nos convida a experimentar a atração de outras formas. Nós sentimos a conexão deles através da música compartilhada em um fone de ouvido, da textura de um moletom emprestado, do toque dos braços que se guiam pela rua. O romance é construído em um vocabulário de sons e toques, em uma intimidade que transcende a imagem. É uma abordagem cinematográfica que não apenas respeita a condição do personagem, mas a utiliza para explorar a descoberta do amor de uma maneira mais profunda e sensorial para todos nós. É nessa abordagem que reside a força revolucionária do filme. Em um cinema repleto de narrativas onde personagens LGBTQIA+ ou com deficiência são definidos por seu sofrimento, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” ousa ser feliz. O conflito existe, o bullying na escola é real e a hesitação é palpável, mas o foco da narrativa é a alegria e a euforia da paixão correspondida. O filme normaliza o amor entre dois garotos tratando-o com a mesma dignidade, doçura e banalidade de qualquer outra história de amor adolescente. Essa escolha de focar no afeto em vez da adversidade é um ato político radical. É a insistência em retratar não apenas a luta pela aceitação, mas a beleza da própria existência. Ao final, nós entendemos que a doçura do filme é a sua arma mais potente. “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” se tornou um marco do cinema brasileiro não por retratar uma realidade de dor, mas por ousar imaginar e validar uma realidade de afeto e esperança. A revolução proposta por Daniel Ribeiro é a de que a representatividade não precisa vir apenas da denúncia da opressão, mas também da celebração da vida. O filme nos deixa com a sensação reconfortante e poderosa de que a jornada de autodescoberta, mesmo com seus obstáculos, pode e deve ser, acima de tudo, uma coisa bela.

Cinema Soviético e Russo

De Lenin a Shakhnazarov: A evolução estética e temática do Mosfilm, da vanguarda ao cinema contemporâneo

A famosa declaração de Lenin de que o cinema era a mais importante das artes não foi apenas uma frase de efeito, foi a certidão de nascimento do Mosfilm. Nenhum outro estúdio no mundo esteve tão intrinsecamente ligado ao projeto de uma nação, servindo por um século como seu espelho, seu martelo e seu confessionário. Acompanhar a trajetória do Mosfilm é acompanhar as convulsões da própria alma russa, desde a utopia febril da Revolução, com sua vanguarda estética radical, até a busca por uma nova identidade nacional no cinema contemporâneo de Karen Shakhnazarov. Nós vemos um colosso que aprendeu a mudar de rosto para sobreviver, refletindo a evolução de um país em sua busca incessante por uma imagem de si mesmo. No início, o Mosfilm foi a forja da Revolução. Nas mãos de Sergei Eisenstein, o cinema se tornou uma arma de propaganda e uma forma de arte inteiramente nova. Em obras como “O Encouraçado Potemkin” (1925), nós somos submetidos a uma estética de choque e colisão. A montagem não servia apenas para contar uma história, mas para gerar ideias e emoções na mente do espectador, para forjar uma nova consciência coletiva. O herói não era um indivíduo, mas as massas, e a câmera celebrava a energia da insurreição com uma força que o mundo nunca tinha visto. Era um cinema que acreditava poder inventar um novo futuro e, para isso, precisava inventar uma nova maneira de ver. Essa liberdade experimental, contudo, foi brutalmente contida pela ascensão do Realismo Socialista. O estúdio que revelou a vanguarda foi o mesmo que a enterrou sob uma estética monumental e conservadora, produzindo épicos que glorificavam o Estado e seus líderes. Décadas mais tarde, no entanto, foi dentro dos mesmos muros da Mosfilm que uma rebelião silenciosa e profunda aconteceu. A câmera de Andrei Tarkovsky se recusou a olhar para o coletivo e se voltou para a paisagem da alma. Seus filmes, como “Solaris” (1972) e “O Espelho” (1974), substituíram a montagem rápida de Eisenstein por longos e hipnóticos planos-sequência, trocando a certeza política pela busca espiritual. Nós fomos convidados a uma jornada interior, um sussurro metafísico que desafiava a ortodoxia materialista do regime. Com o colapso da União Soviética, o Mosfilm enfrentou o risco da irrelevância, apenas para se reinventar sob a longa direção de Karen Shakhnazarov. O estúdio entrou na era do cinema de mercado, mas sem jamais abandonar seu papel como principal narrador da nação. O cinema russo contemporâneo produzido ali é um híbrido fascinante. Nós vemos em filmes como “Tigre Branco” (2012), dirigido pelo próprio Shakhnazarov, a grandiosidade dos épicos soviéticos aliada à tecnologia de Hollywood, mas a serviço de uma nova mitologia. A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, é retratada não apenas como um conflito histórico, mas como uma batalha mística e eterna da alma russa contra o mal absoluto. A trajetória está completa: o Mosfilm nasceu de um decreto para servir a uma ideologia, e hoje, em um mundo capitalista, continua a servir ao projeto de poder do Estado russo. A vanguarda que buscava a revolução universal deu lugar a um espetáculo que busca a consolidação de uma identidade nacional forte e orgulhosa. De Lenin a Shakhnazarov, o estúdio mudou suas ferramentas, suas estéticas e seus temas, mas sua função primordial, a de projetar a imagem da Rússia para o mundo e para si mesma, permanece intacta. A mais importante das artes continua sendo o mais poderoso dos instrumentos.

Cinema Italiano

A Crise da Masculinidade em “O Posto”: O retrato minimalista e desolador da entrada na vida adulta

A promessa de um emprego para toda a vida se revela como uma sentença de morte da alma em “O Posto” (1961). No retrato agridoce e minimalista de Ermanno Olmi, a entrada no mundo adulto não é um rito de passagem para a liberdade, mas um lento processo de rendição. Nós acompanhamos o jovem Domenico em sua jornada para conseguir um “posto fixo” em uma grande corporação de Milão e testemunhamos, em pequenos gestos e silêncios devastadores, a erosão de sua juventude. O filme expõe uma crise de masculinidade sutil e profunda, onde o ideal de se tornar um provedor estável se cumpre ao custo da própria identidade, transformando homens em engrenagens anônimas de uma máquina indiferente. A genialidade de Olmi está em sua recusa ao drama. A câmera observa Domenico com uma paciência quase documental, capturando a estranheza e a ansiedade de seus primeiros passos no mundo corporativo. Nós o vemos durante os testes de admissão, em sua timidez ao se aproximar da colega Antonietta, em seu deslumbramento cauteloso com a cidade grande. Não há vilões claros, apenas um sistema impessoal e asfixiante. A masculinidade que se espera dele não é a da força ou da coragem, mas a da conformidade, a capacidade de se encaixar sem fazer barulho no labirinto de corredores e hierarquias da empresa. A própria corporação se torna a antagonista silenciosa do filme. Os escritórios são espaços desoladores, preenchidos pelo zumbido constante de máquinas e pelo som de papéis sendo carimbados. Os funcionários mais velhos que nós encontramos são figuras tristes, homens que abdicaram de qualquer paixão em troca da segurança de um salário no fim do mês. Eles representam o futuro de Domenico. A breve e tenra conexão que ele estabelece com Antonietta funciona como o último sopro de vida e possibilidade. Seus passeios por Milão são momentos de genuína descoberta, uma alternativa humana e espontânea à rigidez do escritório. A eventual perda desse contato, quando ambos são absorvidos em diferentes departamentos, simboliza a vitória final da máquina sobre o indivíduo. A cena final do filme é uma das mais desoladoras da história do cinema. Domenico finalmente consegue a mesa que tanto esperava, o posto de um funcionário que acabou de falecer. Ele não está começando uma vida, está ocupando o lugar de um homem morto, herdando sua cadeira e seu destino. A câmera se fixa em seu rosto enquanto o som de um mimeógrafo cresce até se tornar ensurdecedor, um ruído mecânico e repetitivo que é a trilha sonora do resto de sua vida. Ele conseguiu o emprego, cumpriu a expectativa social, se tornou “homem”. Mas nós o vemos como uma figura tragicamente diminuída, um jovem cuja luz foi permanentemente apagada. “O Posto” permanece dolorosamente atual porque sua crítica transcende a Itália do milagre econômico. Olmi nos mostra que a verdadeira crise não está no fracasso, mas em um tipo específico e terrível de sucesso. É a crise do homem que aceita a segurança como substituta da paixão, que troca o sonho pela rotina. É o retrato de uma masculinidade construída sobre a anulação do espírito, uma lição silenciosa e poderosa sobre o preço que pagamos para simplesmente nos encaixarmos no mundo.

Cinema Italiano, Todos

“A Vida é Bela”: A fábula, o Holocausto e a polêmica que dividiu a Crítica mundial

Nenhum filme talvez tenha caminhado de forma tão perigosa e apaixonada na linha tênue entre o sublime e o ofensivo quanto “A Vida é Bela” (1997). A audaciosa aposta de Roberto Benigni foi usar as ferramentas da comédia e da fábula para contar uma história ambientada no coração da escuridão do século XX, um campo de concentração nazista. O resultado é uma obra que encantou milhões e ofendeu outros tantos, um filme que nos força a fazer uma pergunta fundamental e desconfortável. Existe uma forma “correta” de representar o horror absoluto? Ao transformar o Holocausto em um jogo de faz de conta, Benigni criou um dos mais belos testamentos ao amor paterno ou cometeu uma irresponsável trivialização da história? A estrutura do filme é a chave para entender sua proposta e sua polêmica. A primeira metade é uma comédia romântica vibrante, quase um conto de fadas. Nós somos apresentados a Guido, uma figura que parece saída da Commedia dell’Arte, um homem que conquista sua “princesa” Dora com uma energia contagiante e uma imaginação que dobra a realidade a seu favor. Benigni nos seduz com um mundo de cores quentes e humor inocente, enquanto as sombras do fascismo crescem nas bordas da tela, como uma nota dissonante que aos poucos se torna a melodia principal. Essa longa introdução nos ensina a acreditar na lógica de Guido, uma lógica onde o amor e a fantasia são as forças mais poderosas do universo. É essa mesma lógica que ele carrega para dentro do abismo. Quando Guido e seu filho Giosuè são deportados para o campo de concentração, ele toma uma decisão radical. Para proteger a inocência do menino, ele usa sua arma mais potente, a imaginação, e constrói uma ficção elaborada. O campo de concentração se torna o cenário de um jogo complexo, cujo prêmio final para quem fizer mil pontos é um tanque de guerra de verdade. Cada brutalidade do cotidiano do campo é traduzida por Guido em uma regra do jogo. A fome, os guardas, o medo da câmara de gás, tudo é reemoldurado por uma narrativa fantástica que funciona como um escudo para a psique da criança. Nesse ponto, a polêmica se instala. Por um lado, nós testemunhamos um dos mais comoventes atos de amor já filmados. Vemos um pai que, diante do mal absoluto, se recusa a deixar que esse mal contamine a alma de seu filho. O filme se torna uma ode à resiliência do espírito humano e à capacidade da fantasia de nos manter vivos. Por outro lado, críticos do mundo inteiro questionaram a validade moral dessa abordagem. Ao filtrar o horror inexprimível do Holocausto através da lente de um jogo, Benigni não estaria suavizando a realidade, tornando-a palatável e, portanto, diminuindo a verdadeira dimensão do sofrimento? Para muitos, a ideia de encontrar beleza ou humor em um campo de extermínio é uma impossibilidade ética. “A Vida é Bela” sobrevive e provoca até hoje porque não oferece uma resposta fácil para essa questão. A aposta de Benigni é total, e ele a leva até as últimas consequências, caminhando como um palhaço para a própria execução a fim de manter a integridade do jogo para seu filho. O filme não argumenta que o Holocausto foi um jogo, mas sim que, para uma criança sobreviver, um pai precisou fingir que era. A imagem final de Giosuè gritando “Vencemos!” a bordo de um tanque americano não é a celebração de uma vitória sobre o nazismo, mas a vitória da fábula de um pai. A polêmica que o cerca não é um defeito, mas a prova de sua força. É um filme que nos obriga a confrontar os limites da representação, deixando-nos para sempre a debater se sua bela mentira foi um ato de sublime humanidade ou um perigoso esquecimento.

Cinema Brasileiro

“Branco Sai, Preto Fica”: A Ficção Científica da periferia como arma de reparação histórica

A ficção científica de Adirley Queirós não busca estrelas distantes, ela aponta suas lentes para as feridas abertas da história brasileira. Em “Branco Sai, Preto Fica” (2014), naves espaciais improvisadas e implantes cibernéticos não servem para nos transportar para outro mundo, mas para nos forçar a encarar a realidade brutal de Ceilândia, na periferia de Brasília. O filme parte dos estilhaços de um evento real de violência policial para construir um manifesto poderoso e inventivo. Nós somos apresentados a uma obra que se apropria da linguagem do futuro para acertar as contas com o passado, transformando o cinema em uma arma de reparação, memória e insurreição. A memória central do filme é uma ferida que nunca cicatrizou. Em 1986, um baile de black music conhecido como Quarentão foi alvo de uma batida policial racista, que deixou vários feridos, incluindo o personagem Marquim do Tropa, baleado e paraplégico. O título do filme é o grito de ordem dado pela polícia naquele dia. Queirós não aborda esse trauma com o distanciamento de um documentário tradicional. Ele convoca os próprios sobreviventes, Marquim e Shockito, para interpretarem versões futuristas de si mesmos, borrando as fronteiras entre realidade e ficção. Eles não são vítimas passivas de uma tragédia, são os protagonistas de sua própria saga de resistência. É para dar conta dessa resistência que a ficção científica se torna uma ferramenta essencial, quase uma necessidade. O gênero permite a Queirós quebrar a lógica do ressentimento e da vitimização. Um homem do futuro, Dimas, é enviado à Ceilândia para investigar o crime de Estado ocorrido no Quarentão. Marquim, agora com pernas biônicas, comanda uma rádio pirata de dentro de seu quarto, transmitindo música e denúncias. A ficção científica aqui é uma “gambiarra”, uma tecnologia precária e genial que reflete a própria capacidade de reinvenção da periferia. Nós entendemos que essa não é uma fantasia de fuga, mas uma estratégia de luta, um modo de reimaginar a própria história para dar a seus heróis a agência que a realidade lhes roubou. A principal arma nessa luta é o som. A música black dos anos 80, que era o alvo da repressão, se torna a munição da revolta. O objetivo da missão de Dimas é coletar provas para detonar uma bomba sonora no Plano Piloto, o centro do poder político em Brasília. O filme constrói uma tese poderosa. A reparação histórica não virá dos tribunais ou do governo, mas da explosão da cultura da periferia no coração de quem sempre tentou silenciá-la. O som é a memória, e a música é o veículo da história que se recusa a ser esquecida. Nós somos levados a sentir o poder de um sound system como um instrumento de poder político. “Branco Sai, Preto Fica” é, portanto, um ato de profunda coragem cinematográfica e política. Adirley Queirós e seus colaboradores não pedem licença para contar sua própria história, eles a reescrevem com as ferramentas que criam, forjando um futuro a partir de um passado roubado. O filme se torna a própria reparação que ele narra, um dispositivo que devolve a voz e a força àqueles que o Estado tentou apagar. Ele nos mostra que, às vezes, para entender o presente e construir um futuro justo, nós precisamos da ousadia de imaginar o impossível.

Cinema Brasileiro

“Bicho de Sete Cabeças”: O grito de Laís Bodanzky contra a brutalidade dos manicômios

O cinema de Laís Bodanzky em “Bicho de Sete Cabeças” (2000) não dialoga, ele grita. É um grito visceral e desesperado que rasga o silêncio cúmplice em torno da barbárie manicomial, uma experiência cinematográfica que nos agarra e se recusa a nos soltar. O filme não nos convida a uma reflexão distante sobre a saúde mental, ele nos interna à força junto com seu protagonista, Neto, e nos submete à mesma lógica desumana e sufocante da instituição. Por meio de uma direção implacável e uma atuação central que se tornou um marco, Bodanzky não apenas conta uma história, mas articula um protesto furioso que ecoa como um aviso permanente contra a violência que praticamos em nome da normalidade. A tragédia não começa com os muros do hospital, mas na incomunicabilidade do lar. Nós testemunhamos a fissura crescente entre Neto, um jovem que encontra sua identidade no rock, na poesia e na arte, e seu pai, um homem de classe média que vê o universo do filho não como expressão, mas como desvio. O baseado encontrado no bolso do casaco é apenas o estopim. A decisão de interná-lo nasce do medo, da ignorância e da incapacidade de um pai em lidar com um filho que ele não reconhece mais. É uma falha familiar, uma terceirização da responsabilidade que entrega Neto a um sistema que não visa curar, mas apagar tudo aquilo que ele é. Uma vez dentro do manicômio, a câmera de Bodanzky se torna nossa cela. Com enquadramentos claustrofóbicos, uma paleta de cores doentia e um desenho de som caótico, nós somos aprisionados em um ambiente de degradação sistemática. A instituição é apresentada como uma máquina de despersonalização. As roupas de Neto são trocadas por um uniforme anônimo, seus cabelos são raspados, sua arte é confiscada. Ele é despido de sua identidade, camada por camada, enquanto o tratamento, centrado em eletrochoques punitivos e sedação massiva, busca aniquilar sua subjetividade. Nós assistimos não a um processo de cura, mas a um projeto de quebra do espírito humano. É no corpo de Rodrigo Santoro que o grito do filme atinge sua potência máxima. Em uma atuação de entrega física e emocional avassaladora, ele se torna a tela onde toda a brutalidade do sistema é inscrita. Nós vemos a confusão em seus olhos se transformar em terror, e o terror em um torpor vazio. Seu corpo se contorce sob o choque elétrico, sua voz é abafada pela violência e pela medicação. Quando a palavra lhe é negada e a arte confiscada, a única forma de protesto que lhe resta é a mais primal de todas, a manifestação da dor. A performance de Santoro transcende a representação, ela se torna a própria encarnação da angústia dos incontáveis jovens silenciados por essa mesma violência. “Bicho de Sete Cabeças” é mais do que um filme, é um ato político. Lançado em um momento crucial dos debates sobre a reforma psiquiátrica no Brasil, ele deu um rosto e uma voz à luta antimanicomial. O grito de Laís Bodanzky e de Neto não ficou confinado à tela, ele invadiu a sociedade e ajudou a impulsionar mudanças reais. Ainda hoje, a obra permanece como um soco no estômago, nos lembrando que a loucura muitas vezes não reside em quem destoa, mas em um sistema que prefere a contenção à compreensão e a brutalidade ao diálogo.

Cinema Brasileiro

“Santiago”: O ensaio de Moreira Salles e a reconstrução da memória como Ato de Criação

Um filme pode nascer de seus próprios escombros. “Santiago” (2007) é a prova mais eloquente dessa verdade, uma obra que surge não de um projeto bem-sucedido, mas da corajosa autópsia de um fracasso. O cineasta João Moreira Salles revisitou as filmagens que havia feito treze anos antes sobre o mordomo de sua família, um homem de cultura enciclopédica e personalidade singular chamado Santiago. O resultado é muito mais que um documentário. É um ensaio cinematográfico sobre a natureza da memória, sobre o poder e a violência da câmera, e sobre como o ato de olhar para o passado com novos olhos pode ser a mais pura forma de criação. Nós somos confrontados com o fantasma do filme que nunca existiu. Salles nos mostra as imagens de 1992, mas sua narração confessional, melancólica e incisiva, nos impede de vê-las com ingenuidade. Ele aponta seu próprio erro como jovem diretor, sua ânsia de controlar a cena, de impor uma ordem que não era a de Santiago. Nós vemos um cineasta que interrompe seu personagem, que o sufoca com a rigidez do dispositivo documental, que tenta extrair uma verdade em vez de permitir que ela se revele. A honestidade de Salles em expor suas falhas transforma o material. As imagens deixam de ser um retrato de Santiago para se tornarem um testemunho da relação complexa e desigual entre quem filma e quem é filmado. Ao mesmo tempo, nós descobrimos que Santiago não era um sujeito passivo. Ele era, em sua própria maneira, o curador de si mesmo. Um homem que passou a vida organizando o mundo em listas, catálogos e árvores genealógicas, tentando impor uma ordem aristocrática a uma vida de servidão. Para a câmera, ele não apenas fala, ele performa. Ele declama textos, recria momentos e tenta dirigir sua própria imagem, legar ao mundo o retrato de um homem culto e refinado. O filme se revela então como um embate silencioso entre duas vontades, a do diretor atrás das câmeras e a do diretor de si mesmo que estava à sua frente. Nenhum dos dois venceu em 1992, e é por isso que o projeto foi abandonado. A verdadeira criação acontece treze anos depois, no ato de reencontro com esse material agora transformado pela morte de Santiago e pela maturidade do cineasta. Salles entende que a memória não é um registro fiel do passado, mas um material bruto, fragmentado e subjetivo. Ao editar as velhas imagens com sua nova compreensão, ele não está simplesmente “corrigindo” um erro. Ele está criando uma obra inteiramente nova. O filme se torna uma reflexão sobre como as histórias são contadas e como as vidas são lembradas. A reconstrução da memória, tanto a de Santiago quanto a do próprio Salles sobre o processo de filmagem, torna-se o próprio gesto artístico. “Santiago” nos ensina que às vezes a representação mais fiel não é a que busca uma verdade objetiva, mas a que admite a impossibilidade dessa busca. Ao construir um filme sobre a falha em fazer um filme, João Moreira Salles oferece a Santiago o monumento mais digno e complexo que poderia existir. Ele não nos entrega um retrato perfeito do mordomo, mas nos envolve no processo de tentar entendê-lo, mostrando que a memória não é algo que se encontra, mas algo que se constrói, dolorosa e belamente, a partir dos fragmentos que o tempo nos deixa.

Cinema Italiano

“O Conformista”: A arquitetura fascista como prisão da alma no cinema de Bernardo Bertolucci

Para entender o protagonista de “O Conformista” (1970), nós não precisamos apenas olhar para seu rosto, mas para as salas monumentais e os corredores vazios que ele atravessa. No cinema de Bernardo Bertolucci, a arquitetura nunca é um mero cenário, ela é a ideologia tornada física, a manifestação concreta do estado de espírito de seus personagens. E em nenhum outro filme isso é mais verdadeiro. A busca desesperada do personagem Marcello Clerici pela normalidade o leva a se abrigar sob a estética do fascismo italiano, e Bertolucci nos mostra como as linhas retas, o mármore gelado e a grandiosidade opressora desses espaços se tornam a própria geografia de uma alma aprisionada. Marcello não abraça o fascismo por convicção política, mas por um desejo patológico de desaparecer. Ele anseia por uma vida sem desvios, uma existência tão linear e previsível quanto os edifícios do poder que ele passa a frequentar. Traumatizado por um evento da infância que o marcou como “anormal”, ele constrói para si uma vida de fachada, com um emprego burocrático, uma esposa medíocre e a filiação ao partido. Ele acredita que ao se tornar uma peça insignificante na engrenagem monumental do Estado, ele poderá finalmente apagar suas particularidades, suas culpas e seus desejos. O que ele busca é a ordem asfixiante da conformidade, e a arquitetura do filme é o espelho perfeito para essa busca. Com a ajuda da cinematografia genial de Vittorio Storaro, Bertolucci esmaga seu protagonista sob o peso dos ambientes. Nós vemos Marcello diminuído em salas gigantescas e desumanas, cujos tetos parecem estar a quilômetros de altura. Ele caminha por corredores que se estendem como sentenças de prisão, frequentemente fatiado por listras de luz e sombra que vazam por persianas, criando grades que o enjaulam visualmente. Os espaços fascistas são simétricos, frios e impessoais, projetados para glorificar o Estado e anular o indivíduo. Eles são a promessa de ordem de Marcello tornada realidade, uma prisão de mármore que ele escolheu para si e que reflete perfeitamente seu próprio vazio interior. Essa estética da opressão é contrastada de forma brilhante com os cenários de Paris. A capital francesa representa tudo que Marcello teme e secretamente deseja, um mundo de caos, sensualidade e liberdade intelectual. O apartamento de seu antigo professor, o alvo que ele deve eliminar, é o oposto exato dos edifícios fascistas. É um lugar cheio de livros, de calor, de desordem e de vida. É lá que ele encontra a liberdade encarnada nas figuras do professor e de sua esposa. Contudo, Marcello é um prisioneiro que tem medo de sair da cela. Ele recua diante da complexidade da vida real e se refugia novamente na missão que lhe foi dada, na pureza brutal de uma ordem que exige obediência e elimina tudo que é diferente. Ao final, nós compreendemos que a tragédia de Marcello é ter conseguido exatamente o que queria. Ele se entregou à rigidez de uma ideologia que se manifestava em prédios colossais e impiedosos para se proteger de si mesmo. Bertolucci nos oferece uma lição poderosa. A maior perversidade do fascismo não está apenas em sua violência explícita, mas em seu poder de sedução estética, em sua promessa de ordem que serve apenas para construir prisões para a alma. Marcello Clerici não é apenas um homem que se torna fascista, ele é um homem cuja paisagem interna já era um projeto arquitetônico totalitário, apenas esperando pelos prédios certos para habitá-lo.

Cinema Italiano

O olhar sobre Roma em “Roma, Cidade Aberta” e “A Doce Vida”

Poucas cidades foram filmadas de maneiras tão visceralmente opostas quanto a Roma de Roberto Rossellini e a de Federico Fellini. Em um intervalo de apenas quinze anos, a capital italiana se transforma diante de nossos olhos, passando de um campo de batalha moral em “Roma, Cidade Aberta” (1945) para um circo existencial em “A Doce Vida” (1960). A mudança não é apenas estética, é a crônica de uma nação em transformação. Rossellini nos filma a alma da cidade em sua hora mais sombria, enquanto Fellini registra o vazio que se instala após a recuperação material. Juntos, eles não apenas criaram obras-primas, mas nos entregaram um retrato duplo e definitivo da consciência italiana no século XX. Em 1945, a Roma de Rossellini ainda cheira a pólvora e desespero. Filmado nas ruas recém-libertadas da ocupação nazista, o filme tem a urgência de um documento histórico. A câmera neorrealista não busca a beleza, ela busca a verdade nas cicatrizes da cidade. Nós não vemos os monumentos turísticos, mas sim os pátios de apartamentos populares, as vielas escuras e os porões onde a resistência se articula. A cidade é um organismo ferido, um labirinto onde cada esquina representa a escolha entre a traição e o sacrifício. A célebre cena da morte de Pina, interpretada por Anna Magnani, fuzilada em pleno asfalto, transforma a rua em um altar de martírio. A Roma de Rossellini é uma cidade de luta coletiva, onde padres, comunistas e cidadãos comuns se unem contra um mal absoluto, encontrando um sentido trágico e nobre na sobrevivência e na solidariedade. Quinze anos depois, a câmera de Fellini nos revela uma Roma completamente diferente. A pobreza deu lugar a um luxo entediado, e a luta pela liberdade foi substituída pela caça desesperada por uma distração. Em “A Doce Vida”, nós somos guiados por Marcello Rubini através de uma cidade que se tornou um palco para o espetáculo do vazio. A Via Veneto, com seus cafés e fotógrafos, é o novo centro do mundo, um lugar de aparências e conversas frívolas. Fellini filma a Fonte de Trevi não como um marco histórico, mas como um cenário para a fantasia inalcançável de uma estrela de cinema. A cidade de Fellini é um deserto espiritual disfarçado de festa perpétua. Seus personagens são profundamente solitários, vagando por festas decadentes e apartamentos suntuosos, incapazes de criar uma conexão real. A luta não é mais contra um inimigo externo, mas contra o nada que corrói tudo por dentro. Apesar da distância que os separa, os dois filmes se conectam por uma busca por sentido em meio a uma crise. Em “Roma, Cidade Aberta”, o sentido é encontrado na fé e no sacrifício pela comunidade, apontando para uma possível redenção após a devastação da guerra. O fuzilamento do padre Don Pietro no final do filme é um ato de esperança, uma semente para a reconstrução moral da Itália. Já em “A Doce Vida”, a busca de Marcello é infrutífera. O filme termina com a imagem de um monstro marinho grotesco na praia, um símbolo da decadência moral que ele não pode mais ignorar. Ele vê o aceno de uma jovem pura e inocente do outro lado de um riacho, mas não consegue mais ouvir ou entender sua mensagem. Rossellini nos mostrou uma cidade que lutava por sua alma e Fellini nos mostrou uma cidade que, ao encontrar o sucesso, talvez a tenha perdido para sempre.

Cinema Brasileiro, Todos

“Ilha das Flores”: O tomate, o porco e o ser humano no que se tornou a maior aula sobre o Brasil

A jornada de um simples tomate serve como o fio condutor da mais brutal e inteligente aula sobre o Brasil já filmada. Talvez por essa precisão cortante e inesquecível, “Ilha das Flores” (1989) seja não apenas uma obra-prima, mas a maior aula sobre o Brasil. A obra de Jorge Furtado nos convida a seguir essa trajetória de forma enganosamente simples, quase como um programa educativo para crianças, com uma narração fria e um ritmo de enciclopédia. Contudo, o que se desdobra em apenas doze minutos é uma das mais contundentes e ferozes dissecações da sociedade capitalista, uma lição que usa a lógica do sistema para expor sua completa e desumana insanidade. O método de Furtado é o que torna o curta tão genial. A narração, em sua voz monocórdica e professoral, define tudo com uma precisão cirúrgica. Nós aprendemos o que é um tomate, o que é um japonês, o que é o dinheiro e o que é um porco. O filme constrói um universo de definições aparentemente racionais e científicas. É essa mesma lógica que ele aplica à cadeia de consumo. O tomate do senhor Suzuki tem valor, é comprado pela dona Anete, serve a um propósito. Quando uma parte dele é rejeitada, ele se torna lixo, mas mesmo como lixo, ele ainda possui uma hierarquia de valor. Ele é transportado para um criadouro de porcos em Porto Alegre, na Ilha das Flores, onde o alimento considerado adequado servirá para engordar os animais. É neste ponto que o filme desfere seu golpe mais poderoso: Nós aprendemos que o dono da criação de porcos tem um critério. O que serve para os porcos é separado, pois a carne do porco tem valor de troca, ela pode ser vendida. O que os porcos rejeitam, o resto do resto, é então liberado para um outro grupo. É quando a câmera nos revela as mulheres e crianças que aguardam do lado de fora da cerca. Elas são o último elo dessa cadeia alimentar perversa. A narração, que antes nos definiu como seres humanos dotados de um telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, agora nos informa que, neste sistema específico, essas pessoas não possuem o dinheiro ou os bens de um porco. Elas valem menos. A câmera não desvia o olhar. Nós vemos os seres humanos, em sua maioria negros, vasculhando o lodo em busca do que os animais não quiseram, com um tempo cronometrado de cinco minutos para garantir a organização. A justaposição entre a descrição clínica de nossas capacidades cognitivas e a imagem de sua anulação pela miséria é devastadora. O filme culmina em uma frase que ecoa por décadas: Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Ao nos mostrar pessoas supostamente livres, mas efetivamente aprisionadas pela fome a uma condição subanimal, “Ilha das Flores” nos força a questionar o verdadeiro significado de palavras como liberdade, dignidade e humanidade. Ele se tornou a maior aula sobre o Brasil porque, com a trajetória de um único tomate, nos ensinou tudo sobre a nossa economia, nossa indiferença e o preço real da desigualdade.

Cinema Brasileiro

A Crise da Masculinidade: Do machão ao pai fragilizado, o cinema reflete os novos homens brasileiros

O cinema brasileiro tem nos mostrado que o pedestal do homem inabalável está rachando. Por décadas, nós nos acostumamos a ver nas telas a representação de uma masculinidade monolítica, forjada na força, no silêncio e no controle, seja na figura do sertanejo resiliente, do malandro astuto ou do provedor austero. Contudo, uma nova safra de filmes vem registrando com uma honestidade brutal o desmoronamento dessa estátua. A crise da masculinidade que reverbera em nossa sociedade encontra no cinema um espelho poderoso, que reflete não a figura de um novo homem já pronto, mas o processo doloroso e confuso de sua desconstrução. Nós estamos testemunhando o eco do grito de homens que não sabem mais qual papel devem desempenhar. O ponto de implosão desse modelo antigo talvez seja o Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (2007). Ele é o arquétipo do macho levado às últimas consequências, um homem que transforma o próprio corpo e a própria psique em uma arma para sobreviver a um sistema corrupto. Nós o vemos operar com uma eficiência assustadora, mas o filme é genial ao nos mostrar o preço dessa armadura. Cada ato de violência, cada supressão de sentimento, o afasta de sua família e de sua própria humanidade. Nascimento vence a guerra nas ruas, mas perde a guerra dentro de si. Ele é um pai ausente, um marido incapaz de conexão, um homem em frangalhos. Sua figura trágica representa o beco sem saída de uma masculinidade que exige a anulação do afeto e da vulnerabilidade. Se Nascimento é a explosão, outros filmes exploram as ruínas. Em “Que Horas Ela Volta?” (2015), nós encontramos em Carlos a figura do patriarca decadente. Ele vaga pela própria casa como um fantasma, um artista frustrado cuja autoridade foi corroída pela independência financeira da esposa. Sua tentativa de seduzir a filha da empregada não é um ato de poder, mas de desespero, um esforço patético para reafirmar uma virilidade que ele não possui mais. Ele não é um monstro, é um homem perdido, fragilizado pela perda de um lugar de poder que ele nunca soube como substituir por um de parceria. Nós o observamos e vemos o retrato de uma geração de homens que não são mais os provedores incontestáveis e que se veem sem um roteiro para seguir. É nesse terreno de incertezas que surgem as novas representações, como a do pai em “Marte Um” (2022). Wellington é um homem comum, um porteiro cujo sonho para o filho é o futebol, um dos últimos redutos da masculinidade tradicional. Quando seu filho revela que seu verdadeiro sonho é estudar astrofísica e colonizar Marte, o mundo de Wellington desaba. Sua jornada no filme é a da aceitação. Ele precisa desmontar a imagem do homem que ele achava que deveria ser, e do filho que ele projetou, para aprender a amar o homem que ele é e o filho que ele realmente tem. Sua fragilidade, expressa em seu choro sincero e em seu abraço final, não é um sinal de fraqueza. É, na verdade, um ato de imensa força, a força necessária para se reinventar. O cinema brasileiro, portanto, não está apenas filmando homens, está nos convidando a repensá-los. A câmera, que antes glorificava a ação e a fúria, agora busca os detalhes, os olhares vacilantes, os silêncios que não são de força, mas de dúvida. Nós estamos vendo em tempo real a transição de um cinema de afirmação masculina para um cinema de questionamento. Essa crise, tão visível nas telas, reflete a nossa própria. É um processo de luto pelo homem que fomos ensinados a ser e uma busca ansiosa e fundamental pelo homem que nós podemos nos tornar.

Cinema Soviético e Russo

A Ficção Científica soviética: Uma viagem por utopias, distopias e reflexões filosóficas, de “Solaris” a “Stalker”

Enquanto a ficção científica de Hollywood olhava para as estrelas em busca de aventura, espetáculo e batalhas espaciais, o cinema soviético frequentemente usava o espaço sideral como um pretexto para uma viagem muito mais complexa e profunda, a jornada para dentro da alma humana. Longe de ser apenas sobre foguetes e alienígenas, o gênero na União Soviética se tornou um palco para reflexões filosóficas, onde as maiores obras, como “Solaris” (1972) e “Stalker” (1979) de Andrei Tarkovsky, usaram o futuro e o desconhecido para fazer as perguntas mais antigas e essenciais sobre a nossa própria existência. Nos primeiros anos da União Soviética, a ficção científica era frequentemente utópica, celebrando o triunfo da ciência e do comunismo em futuros perfeitos e tecnologicamente avançados. Contudo, com o passar do tempo, cineastas mais ousados começaram a usar a distância do gênero para explorar as rachaduras desse sonho. O maior mestre dessa ficção científica filosófica foi Andrei Tarkovsky. Para ele, o gênero era apenas uma moldura para pintar seus quadros sobre fé, memória, amor e a crise espiritual do homem moderno. Em “Solaris” nós somos levados a uma estação espacial que orbita um misterioso planeta oceânico e consciente. A premissa parece ser de um clássico contato com extraterrestres, mas o filme rapidamente se revela outra coisa. O planeta Solaris começa a materializar “visitantes” na estação, que são cópias físicas de pessoas retiradas das memórias mais dolorosas dos tripulantes. O protagonista, o psicólogo Kris Kelvin, é assombrado pela aparição de sua esposa, que se suicidou anos antes por sua causa. A viagem ao espaço se transforma em uma viagem para dentro de sua própria culpa. O filme não quer saber como nos comunicar com o alienígena, mas sim como nós podemos viver com os fantasmas da nossa própria consciência. “Solaris” usa um cenário futurista para argumentar que nós podemos cruzar a galáxia, mas jamais conseguiremos escapar de nós mesmos. Sete anos depois, Tarkovsky nos levaria a outro lugar misterioso em “Stalker”. O filme se passa em um mundo desolado, onde existe uma “Zona” proibida, um lugar de natureza exuberante e anomalias físicas onde, supostamente, existe um quarto que realiza o desejo mais íntimo de quem entrar nele. Um guia, o “Stalker”, leva dois clientes, um Escritor cínico e um Professor pragmático, em uma jornada ilegal até o centro da Zona. Novamente, a ficção científica é apenas o ponto de partida. A Zona não é um lugar físico, mas espiritual. A jornada até o quarto é uma peregrinação em busca de fé em um mundo que a perdeu completamente. Os três personagens representam a fé, a arte e a ciência, três pilares da alma humana em crise. A conclusão do filme é devastadora. Ao chegarem ao destino, eles não têm coragem de entrar, com medo do que seus verdadeiros desejos possam revelar. É uma meditação profunda sobre esperança, cinismo e a dificuldade de se ter fé em um mundo que parece não oferecer milagres. O legado da ficção científica soviética, especialmente a de Tarkovsky, é o de um cinema que valoriza a pergunta acima da resposta e a alma acima da tecnologia. Suas obras são lentas, poéticas e exigem a nossa paciência, mas nos recompensam com uma beleza e uma profundidade raras. Elas nos lembram que os maiores mistérios do universo não estão em planetas distantes ou em galáxias desconhecidas, mas sim dentro do coração humano. A jornada em “Solaris” e “Stalker” não é sobre encontrar vida extraterrestre, mas sobre confrontar o território estranho, assustador e maravilhoso que existe dentro de nós.

Cinema Brasileiro

“Bacurau” e a cura do complexo de vira-lata a bala

O escritor Nelson Rodrigues diagnosticou uma das doenças mais crônicas da alma brasileira, o “Complexo de Vira-Lata”, aquela sensação de inferioridade que nos faz acreditar que tudo o que é estrangeiro é inerentemente superior. O filme “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um coquetel molotov cinematográfico jogado diretamente sobre essa ferida. A obra não propõe uma reflexão pacífica sobre nossa identidade. Ela oferece um tratamento de choque, uma cura brutal e catártica para esse mal, uma cura administrada não com discursos, mas com balas. O filme primeiro nos apresenta um diagnóstico preciso da doença. Os vilões são um grupo de caçadores estrangeiros, na maioria americanos, que veem o sertão brasileiro como um playground exótico para seu safári humano. Para eles os moradores de Bacurau não são pessoas, são alvos, uma forma de vida inferior que pode ser eliminada por esporte. Essa é a mentalidade colonialista em sua forma mais pura. Pior ainda são os dois colaboradores brasileiros, vindos do sudeste, que guiam os gringos. Eles são a personificação do Complexo de Vira-Lata, indivíduos que desprezam suas próprias raízes, imitam o estrangeiro e sentem prazer em participar do massacre de seus compatriotas para se sentirem parte do mundo “superior”. O filme os trata com um desprezo ainda maior do que aos próprios assassinos. Em oposição direta a essa doença, nós temos o antídoto: a própria comunidade de Bacurau. A cidade é um microcosmo de um Brasil que se recusa a ser submisso. Seus moradores celebram sua própria cultura, honram sua história de resistência em um museu que é também um arsenal e vivem com um senso de solidariedade e autonomia feroz. Bacurau foi literalmente apagada do mapa pelo político corrupto que a vendeu aos estrangeiros, mas a cidade se recusa a ser invisível. Essa identidade forte e orgulhosa é a base para a resistência que está por vir. Quando o ataque começa, a terapia de choque tem início. O povo de Bacurau não reage com medo ou súplica. Eles se organizam, unem forças com figuras antes marginalizadas como o fora da lei Lunga e respondem com uma violência calculada, inteligente e ainda mais selvagem que a de seus agressores. A violência em “Bacurau” é um ato político, uma declaração de soberania. Cada tiro disparado pelos moradores é um grito que diz “nós não somos suas vítimas”, “nós não somos inferiores” e “esta terra tem dono”. A caça se inverte de forma espetacular, e a cura do complexo de vira-lata começa com a recusa visceral do papel de presa. O filme sugere que a cura completa exige um expurgo. O destino dos caçadores estrangeiros é uma vingança anticolonial direta. Mas a execução dos traidores brasileiros é tratada como um ato ainda mais significativo. É a remoção cirúrgica e violenta do “vira-lata” de dentro do corpo nacional, a ideia de que a subserviência interna precisa ser eliminada para que a nação possa lutar contra o inimigo externo. “Bacurau” é, portanto, uma alegoria poderosa sobre o Brasil. Ele identifica o Complexo de Vira-Lata no desprezo com que o mundo nos vê e na servidão com que parte de nós aceita esse olhar. E então, ele propõe uma cura a bala. Uma cura que é uma metáfora para um despertar nacional, para uma afirmação agressiva de identidade e para a retomada da própria agência. É a fantasia de um Brasil que se cansa de ser o quintal do mundo e que, com as próprias mãos, decide que não é um vira-lata, mas um pássaro bravo que sabe muito bem como se defender.

Cinema Brasileiro

Além de Zé do Caixão: O Terror Brasileiro e os fantasmas sociais que nos assombram hoje

O cinema de terror brasileiro nasceu com um rosto, o de Zé do Caixão. A figura genial e subversiva criada por José Mojica Marins deu ao nosso país uma mitologia de horror única, provando que nós não precisávamos de vampiros ou zumbis importados. Hoje uma nova e talentosa geração de cineastas continua esse legado, olhando para além de Zé do Caixão para encontrar novos monstros. O mais fascinante é que esses novos monstros não vêm do inferno ou de túmulos amaldiçoados. Eles vêm da nossa própria realidade. O novo terror brasileiro usa o gênero para falar dos fantasmas sociais que realmente nos assombram, como a desigualdade, o racismo e a violência. Essa nova onda de filmes entende que, no Brasil, a realidade muitas vezes já é um filme de terror. Os cineastas usam lobisomens, canibais e fantasmas como metáforas poderosas para expor as feridas abertas da nossa sociedade. Em “As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra, uma história de lobisomem se transforma em um conto de fadas sombrio sobre a luta de classes e o racismo em São Paulo. O “monstro” nasce da relação entre a patroa branca e rica e a empregada negra e pobre, revelando as tensões da “casa grande e senzala” que ainda estruturam o nosso país. Outros filmes mergulham na violência urbana que nós vemos todos os dias nos jornais. Em “O Animal Cordial” (2017), de Gabriela Amaral Almeida, a explosão de brutalidade dentro de um restaurante durante um assalto mostra como a paranoia e a raiva social estão presas dentro de nós, prontas para explodir a qualquer momento. Já em “Morto Não Fala” (2018), de Dennison Ramalho, um funcionário de necrotério que consegue falar com os mortos ouve os relatos das vítimas da guerra do tráfico. Os fantasmas aqui não são assombrações distantes, são as vítimas reais da nossa violência cotidiana, e eles clamam por vingança. O terror se torna também uma arma de crítica política afiada. Filmes como “O Clube dos Canibais” (2018), de Guto Parente, e o aclamado “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, usam o horror para atacar a elite. O primeiro mostra, de forma literal, uma classe alta que devora seus empregados para manter o poder. O segundo mistura faroeste e ficção científica para contar a história de uma comunidade esquecida no sertão que decide revidar quando se torna um alvo de caça para turistas estrangeiros com a conivência de políticos locais. Em ambos os casos, o monstro é a classe dominante, predatória e desumana. O que une todos esses filmes é a percepção de que o verdadeiro horror no Brasil não é sobrenatural. Os fantasmas que nos assombram não são os que arrastam correntes, mas os fantasmas da escravidão, da ditadura militar, da desigualdade abissal e da violência endêmica. São os traumas históricos que nós nunca resolvemos de verdade e que continuam a nos aterrorizar no presente. O novo terror brasileiro tem a coragem de olhar para esses monstros de frente. Dessa forma, o cinema de horror nacional se prova um dos movimentos mais vibrantes e importantes da nossa cultura atual. Ele vai além de Zé do Caixão não para esquecê-lo, mas para honrar seu espírito de rebeldia, aplicando-o aos medos do nosso tempo. Esses cineastas nos mostram que o terror é a linguagem perfeita para um país como o Brasil, pois nos permite falar sobre o indizível e dar forma aos demônios sociais que, muitas vezes, são bem mais assustadores do que qualquer ficção.

Cinema Brasileiro

“Vidas Secas”: Onde o sol queima a tela e o silêncio grita mais alto que a fome

A força cinematográfica de “Vidas Secas” (1963) reside em dois elementos brutais: o sol ofuscante que queima a tela e o silêncio profundo que grita mais alto que a fome. A obra prima de Nelson Pereira dos Santos, baseada no romance de Graciliano Ramos, é uma experiência quase física, um cinema que nos faz sentir sede e cansaço. É um lugar onde o sol castiga a tela com sua luz branca e onde o silêncio dos personagens se torna um grito muito mais poderoso e desesperado do que a própria fome que os consome. A estética do filme é a estética da sede. Nelson Pereira dos Santos e o fotógrafo Luiz Carlos Barreto filmaram o sertão nordestino em um preto e branco de alto contraste, quase estourado. O sol não é uma fonte de vida, é um inimigo, um personagem onipresente que queima a terra, cega os olhos e pune os corpos. A paisagem não é um cenário, mas uma prisão sem muros. As imagens da terra rachada, das árvores esqueléticas e do céu imensamente branco e vazio nos transmitem a pequenez e o desamparo daquela família de retirantes, tornando sua jornada cíclica e aparentemente sem fim. Nesse ambiente brutal, as palavras parecem evaporar junto com a água. Os personagens, Fabiano, Sinhá Vitória e seus dois filhos, quase não falam. A comunicação entre eles é reduzida ao essencial, a gestos, a monossílabos e a grunhidos. Essa escolha não é um simples recurso de estilo, é a tese central do filme sobre a desumanização. Fabiano luta internamente com a própria condição, pensando que deixou de ser homem para se tornar um “bicho”. A perda da linguagem, da capacidade de articular a própria dor e o próprio pensamento, é o sintoma mais profundo da opressão que ele sofre. O sistema o esmagou a tal ponto que lhe roubou a ferramenta mais básica da humanidade, a palavra. É por isso que o silêncio em “Vidas Secas” grita tão alto. Ele não é vazio, mas preenchido por séculos de miséria, de resignação e de uma dor que não encontra forma de ser expressa. É um silêncio político, o silêncio de um povo que foi historicamente calado. Os únicos sons que dominam o filme são os da natureza hostil, como o ranger agoniante da roda de um carro de boi, que se torna a trilha sonora daquela existência sofrida. A cachorrinha Baleia, em muitos momentos, parece ter uma vida interior mais rica e “humana” que a de seus donos, uma inversão trágica que apenas sublinha a profundidade da degradação a que a família foi submetida. A fome que atormenta Fabiano e sua família é real e física, mas o filme nos mostra que existe uma fome ainda mais profunda: a fome de dignidade, de expressão e de sentido. O silêncio é o som dessa fome espiritual. Ao se recusar a dar a seus personagens discursos de revolta ou lamentos dramáticos, Nelson Pereira dos Santos cria uma denúncia muito mais poderosa. O sofrimento mudo daquela família se torna um testemunho irrefutável e uma condenação silenciosa da estrutura social que lhes nega a própria condição de serem humanos. “Vidas Secas” é uma obra difícil, por vezes dolorosa de assistir, mas absolutamente essencial. É o trabalho de um mestre que compreendeu que as verdades mais cruéis do Brasil não precisavam ser ditas, mas sim vistas e sentidas. Ele fez o sol queimar a tela para nos mostrar uma terra sem piedade e usou o silêncio de seus personagens para nos fazer ouvir o mais eloquente e inesquecível grito por justiça da história do nosso cinema.

Cinema Brasileiro

Nelson Pereira dos Santos: O pai (e a Consciência Crítica) de todo o movimento

Todo grande movimento artístico precisa de uma faísca, de alguém que dê o primeiro passo e mostre que um novo caminho é possível. Para o Cinema Novo, a mais importante revolução do cinema brasileiro, essa figura fundamental foi Nelson Pereira dos Santos. Ele não foi apenas o pai que deu o pontapé inicial em tudo, mas também se consolidou como a consciência crítica do movimento, a voz que sempre manteve a honestidade intelectual e a complexidade em um tempo de discursos fáceis e radicais. Seu papel como o pai do Cinema Novo é inquestionável e pode ser localizado em um filme específico, “Rio, 40 Graus” (1955). Muito antes do lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” se tornar famoso, Nelson já o colocava em prática. Naquela época, o cinema brasileiro era dominado por comédias de estúdio que imitavam o modelo de Hollywood. Ele quebrou radicalmente com isso. Nelson pegou sua câmera e foi para as ruas, para as praias e, o mais importante, para os morros do Rio de Janeiro. Ao contar a história de um dia na vida de vendedores de amendoim de uma favela, ele expôs o brutal contraste social da “cidade maravilhosa”. Pela primeira vez, o Brasil real, com sua pobreza e sua vitalidade, era o protagonista. Esse ato de filmar o povo em seu ambiente foi o gesto fundador que inspirou toda uma geração de cineastas, como Glauber Rocha, a buscar um cinema autenticamente brasileiro. Contudo, ser apenas o pioneiro não definiria a sua grandeza. Nelson Pereira dos Santos se tornou também a consciência crítica do movimento. Enquanto alguns de seus colegas optavam por um cinema de fúria e discursos revolucionários, os filmes de Nelson preferiam as perguntas difíceis às respostas prontas. Sua obra-prima, “Vidas Secas” (1963), é o maior exemplo disso. Baseado no livro de Graciliano Ramos, o filme é um retrato seco, quase silencioso e profundamente doloroso da opressão. Nós acompanhamos a luta de uma família de retirantes no sertão, esmagada pela seca e pela injustiça de um sistema feudal. O filme não grita por revolução. Ele nos mostra, com uma clareza insuportável, a desumanização que torna a revolução uma necessidade. É uma crítica social que reside na observação paciente da dor, não no panfleto. Essa recusa em criar heróis e vilões fáceis marcou toda a sua carreira. Em “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1971), feito durante o período mais duro da ditadura militar, ele usou uma história do século XVI para fazer uma crítica poderosa ao colonialismo. Mas, ao mesmo tempo, ele se recusou a romantizar os indígenas como “nobres selvagens”. O filme apresenta uma visão complexa da antropofagia como um ato de resistência cultural, mas não esconde a violência e a complexidade daquela sociedade. Essa honestidade intelectual, essa coragem de questionar todos os lados de uma história, era a marca de sua consciência crítica. Diferente da fúria operística de Glauber Rocha, o cinema de Nelson Pereira dos Santos era mais humanista, sereno e profundamente enraizado na literatura e na alma popular brasileira. Ele foi o pai porque abriu a trilha, mostrando que era possível fazer um cinema relevante e verdadeiro com poucos recursos. E foi a consciência crítica porque seus filmes nunca se contentaram com ideologias simplistas. Ele passou a vida fazendo perguntas difíceis sobre o Brasil, sobre seu passado de opressão e sobre a natureza complexa de seu povo. Nelson não apenas iniciou um movimento, ele lhe deu integridade e uma alma pensante.

Cinema Italiano, Todos

“Feios, Sujos e Malvados”: A Comédia Grotesca de Ettore Scola e a humanidade esquecida nas favelas de Roma

O cinema italiano sempre soube rir das próprias desgraças, mas nenhum filme levou essa ideia a um extremo tão chocante, repulsivo e genial quanto “Feios, Sujos e Malvados” (1976). O diretor Ettore Scola, conhecido por suas crônicas melancólicas da burguesia, desce aqui ao inferno, a uma favela na periferia de Roma, para nos apresentar a um retrato de família que desafia todos os limites. É uma comédia grotesca, um soco no estômago que nos faz rir de culpa para, no fim, nos forçar a enxergar a humanidade esquecida que a sociedade prefere varrer para debaixo do tapete. O filme nos joga, sem qualquer preparo, dentro de um barraco imundo onde vive a gigantesca família Mazzatella. São quatro gerações de gente amontoadas em um espaço sufocante, em meio a ratos, lixo e uma miséria moral ainda maior que a material. O centro desse universo caótico é o patriarca Giacinto, interpretado de forma monstruosa e inesquecível por Nino Manfredi. Tirano, alcoólatra e com um olho só, ele guarda com violência um milhão de liras que ganhou de um seguro, enquanto sua família, com filhos, netos, noras e genros, passa os dias planejando formas de roubá-lo ou envenená-lo para botar as mãos no dinheiro. A comédia de “Feios, Sujos e Malvados” não é feita de piadas, mas do absurdo da depravação. Scola filma o grotesco sem filtros, mostrando tentativas de assassinato durante o almoço, relações incestuosas, traições e uma falta de higiene que quase podemos sentir o cheiro. Nós rimos do plano ridículo de colocar veneno de rato na macarronada do patriarca, mas o riso engasga na garganta. Esse humor que dói é a principal ferramenta do diretor. Ao nos fazer rir do que é horrível, ele quebra o nosso conforto e nos torna cúmplices, nos obrigando a questionar por que achamos graça em uma tragédia tão profunda. Onde está a humanidade que o título da análise promete? É exatamente essa a pergunta que Scola quer que nós façamos. Ao mostrar essa família como um bando de animais selvagens, ele não está zombando dos pobres. Pelo contrário, ele está apontando um dedo acusador para a sociedade que os criou. A monstruosidade da família Mazzatella é um reflexo direto da monstruosidade de um sistema (o do “milagre econômico” italiano) que produziu riqueza para alguns e deixou uma massa de esquecidos para trás, vivendo em condições sub-humanas. Eles são feios, sujos e malvados porque foram abandonados pela política, pela Igreja e pela sociedade. A humanidade esquecida deles não está na bondade ou na nobreza, que a miséria extrema lhes roubou. Está na sua vitalidade crua e incontrolável. Eles gritam, brigam, traem, amam de forma torta e, acima de tudo, sobrevivem. Há uma força de vida absurda naquele barraco, um instinto de perseverança que o mundo limpo e educado da burguesia talvez já tenha perdido. No meio de toda a sujeira, a vida continua explodindo, com um novo bebê nascendo na cena final, garantindo a continuidade daquele clã esquecido. “Feios, Sujos e Malvados” é um filme difícil, que se recusa a romantizar a pobreza. Ele a mostra como algo que degrada, que desumaniza e que transforma a luta pela vida em uma guerra de todos contra todos. Scola não nos pede para gostar da família Mazzatella. Ele apenas nos proíbe de virar o rosto. Ao nos forçar a encarar o grotesco, ele comete um ato político, nos lembrando que essa humanidade esquecida existe e que a sua condição é a grande ferida moral da sociedade que se considera civilizada.

Cinema Soviético e Russo

Um alerta ao presente: “O Fascismo de Todos os Dias” continua assustadoramente atual

Existem filmes que servem como cápsulas do tempo, nos mostrando um passado distante e superado. E existem filmes que funcionam como um espelho, refletindo o nosso próprio presente com uma clareza desconfortável. O documentário soviético “O Fascismo de Todos os Dias” (1965) pertence assustadoramente a essa segunda categoria. Mais do que uma aula de história sobre a Alemanha Nazista, o filme do diretor Mikhail Romm é um ensaio psicológico sobre como a maldade se torna banal e como sociedades inteiras podem ser seduzidas pela tirania. E o seu alerta nunca foi tão urgente. O que torna este documentário tão diferente e poderoso é a sua abordagem. Em vez de nos apresentar a historiadores explicando eventos, Romm utiliza quase que exclusivamente imagens de arquivo, muitas delas filmadas pelos próprios nazistas, desde propagandas oficiais até filmes caseiros. Sobre essas imagens, ouvimos a narração do próprio diretor. Sua voz não é a de um professor distante, mas a de um homem inteligente, irônico e profundamente triste, que conversa conosco, faz perguntas e nos guia através do absurdo. O foco do filme não são as batalhas ou as estratégias, mas sim a pergunta que mais importa: como isso foi possível? Como milhões de pessoas comuns abraçaram uma ideologia de ódio? A resposta está no título: o fascismo “de todos os dias”. A genialidade de Romm foi mostrar que o horror não começou nos campos de concentração e sim na vida cotidiana. O filme dedica grande parte de seu tempo a mostrar a banalidade do mal: crianças sendo ensinadas a saudar o líder antes mesmo de aprender a ler, multidões em ginásticas coletivas perfeitamente sincronizadas, a cultura do desprezo aos mais fracos, o culto a um ideal de beleza e força, e a alegria forçada e fabricada em desfiles monumentais. Ele nos mostra como o fascismo invade a cultura, a arte, a educação e as famílias, envenenando cada aspecto da vida até que o impensável se torne normal. E é exatamente aqui que o filme deixa de ser uma peça de museu e se torna um espelho para o nosso presente. As ferramentas de manipulação que “O Fascismo de Todos os Dias” expõe continuam assustadoramente atuais e reconhecíveis. O culto ao líder carismático que se apresenta como o único salvador da nação; a propaganda incessante que cria uma narrativa de “nós contra eles”, demonizando minorias, intelectuais e a imprensa, o uso de grandes espetáculos e comícios para gerar uma emoção coletiva que esmaga o pensamento individual, e o ataque à ciência e à complexidade em favor de slogans simples e soluções fáceis. Acima de tudo, o filme nos alerta sobre o perigo da conformidade e da apatia. Ele mostra que o fascismo não precisa que todos sejam monstros sádicos. Ele precisa apenas que pessoas comuns se acostumem com a crueldade, repitam o discurso de ódio sem pensar e, o mais importante, fiquem em silêncio por medo ou por conveniência. O fascismo não chega de repente com tanques na rua, mas se infiltra aos poucos, no discurso que desumaniza o vizinho, na piada que normaliza o preconceito e na decisão de não se importar. “O Fascismo de Todos os Dias” é um filme essencial porque funciona como uma vacina contra a amnésia histórica. Ele nos lembra que o fascismo não é um monstro do passado, mas um vírus recorrente que se alimenta do medo, da ignorância e do desejo humano por respostas simples. A mensagem final não é de desespero, mas de responsabilidade. É uma tarefa de “todos os dias” que cidadãos comuns se mantenham vigilantes, pensem criticamente e defendam a humanidade e a decência que o fascismo sempre tentará destruir.

Cinema Brasileiro

“Cidade de Deus” reescreveu o Cinema de Ação e revelou o Brasil ao mundo

Segura a galinha! Com essa cena de abertura caótica, vibrante e cheia de uma energia que saltava da tela, “Cidade de Deus” (2002) se apresentou ao mundo. O filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund não pedia licença; ele arrombava a porta. Era um filme de ação que não se parecia com nada que Hollywood já tinha feito e um drama social que não tinha medo de ser pop. Foi um fenômeno que não apenas redefiniu um gênero, mas também apresentou ao planeta um Brasil brutal, complexo e inesquecível, muito longe dos cartões-postais. Antes de “Cidade de Deus”, o cinema de ação seguia uma fórmula muitas vezes previsível, com heróis musculosos e tiroteios coreografados. O filme brasileiro rasgou essa receita. A sua linguagem era a do videoclipe, com uma edição frenética, uma câmera na mão que tremia junto com os personagens, cores vibrantes que faziam o sol do Rio de Janeiro quase queimar nossos olhos e uma montagem que pulava no tempo sem pedir desculpas. A violência aqui não era bonita ou estilizada, mas suja, desesperada e assustadoramente real. Essa sensação de verdade vinha também da escolha genial de usar, em sua maioria, atores não profissionais, moradores das próprias comunidades, que traziam para seus papéis uma autenticidade que dinheiro nenhum pode comprar. A história é contada pelos olhos de Buscapé, o garoto que está no meio do furacão, mas se recusa a ser parte dele. Sua arma não é um revólver, é uma câmera fotográfica. Ele é o nosso guia nesse inferno, e seu lema, “Corra!”, é a regra de sobrevivência número um. Nós corremos com ele para fugir das balas, para escapar da vida do crime, para buscar um sonho. Através de seu olhar, conhecemos as figuras que marcaram a favela por décadas: o aterrorizante Zé Pequeno, que não é um vilão de cinema, mas a personificação da maldade pura, um sociopata que mata por prazer; e o trágico Mané Galinha, o homem bom que é arrastado para a guerra e consumido pelo desejo de vingança. O filme nos mostra que, naquele lugar, o ciclo de violência engole a todos, e a linha entre o bem e o mal é uma fumaça no ar. O impacto de “Cidade de Deus” foi global e imediato. Para milhões de pessoas ao redor do mundo, a imagem do Brasil era feita de carnaval, futebol e praias paradisíacas. O filme estilhaçou esse clichê. Ele revelou as veias abertas da desigualdade social brasileira, a realidade da guerra do tráfico e a ausência do Estado nas periferias. Mas seu grande trunfo foi fazer isso sem nunca perder a humanidade de seus personagens. Não era apenas um filme sobre desgraça, mas sobre vida, amizade, primeiro amor, sonhos e a luta para sobreviver em um lugar onde a morte está sempre na espreita. O mundo não viu apenas bandidos. Viu crianças, viu pessoas. Com quatro indicações ao Oscar e aclamação universal, “Cidade de Deus” colocou o cinema brasileiro no centro do palco mundial e influenciou uma geração de diretores com seu estilo e energia. É um épico social contado com a velocidade de um thriller, um filme que prova que uma história nascida na favela pode ser tão universal quanto uma tragédia de Shakespeare. O clique final da câmera de Buscapé não foi apenas a foto que o salvou. Foi o som de um novo Brasil sendo revelado ao mundo, com toda a sua dor, sua beleza e sua fúria inesquecível.

Cinema Brasileiro

“Deus e o Diabo na Terra do Sol”: A Fúria Visionária de Glauber Rocha que ainda explica o Brasil

Existem filmes que envelhecem. E existem filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), que parecem ficar mais ferozes e atuais a cada ano que passa. A obra-prima de Glauber Rocha não é apenas um clássico do nosso Cinema Novo, mas um grito, um transe, uma febre cinematográfica que conseguiu mapear a alma e as contradições do Brasil de uma forma tão genial e brutal que, mais de meio século depois, ainda serve como um espelho assustador para o nosso presente. A fúria visionária de Glauber ainda explica o Brasil. O filme nos joga no sertão, um cenário que é muito mais do que uma paisagem. O sertão de Glauber é uma terra mítica, queimada pelo sol, onde a miséria extrema e a beleza divina caminham de mãos dadas. É nesse palco de fome e fé que conhecemos o vaqueiro Manuel, o personagem que representa o povo brasileiro: explorado, desesperado e em uma busca cega por uma saída, por qualquer salvação que o livre de sua vida de miséria. E é nessa busca que ele se depara com as duas saídas que, desde sempre, assombram o Brasil: a do misticismo e a da violência. Primeiro, Manuel encontra seu “Deus”: o beato Sebastião, um líder messiânico que promete o paraíso na Terra através de uma fé cega e de rituais violentos. Ele atrai uma multidão de seguidores desesperados, oferecendo uma fuga espiritual para um sofrimento que é bem real. É impossível não ver aqui o reflexo do Brasil de hoje, um país onde líderes religiosos e políticos com discursos messiânicos ainda exercem um poder imenso sobre uma população carente, prometendo soluções mágicas para problemas complexos e, muitas vezes, levando a um beco sem saída de fanatismo e controle. Expulso do paraíso violento de Sebastião, Manuel encontra seu “Diabo”: o cangaceiro Corisco, herdeiro do bando de Lampião. Se Deus oferecia a salvação no céu, o Diabo oferece a vingança na Terra. Corisco prega a libertação através da força bruta, da vingança contra os coronéis e da violência como única forma de justiça. Novamente, Glauber acerta no coração do Brasil, um país preso em um ciclo de violência sem fim, onde a resposta à opressão muitas vezes é mais derramamento de sangue, seja na criminalidade ou na radicalização política, um caminho que leva apenas à autodestruição. E para garantir que nenhuma dessas forças populares (nem a fé de Deus, nem a fúria do Diabo) prospere, existe Antônio das Mortes. O matador de aluguel, braço armado dos poderosos, contratado pela Igreja e pelos latifundiários para eliminar tanto o beato quanto o cangaceiro. Ele é o símbolo do Estado e das elites, que historicamente sempre agiram com força letal para esmagar qualquer movimento popular que ameace a ordem, não importa a sua origem. É por isso que o filme ainda grita tão alto. O Brasil de hoje continua sendo a terra de Manuel, um povo ainda perdido entre as promessas de “deuses” salvadores e a sedução de “diabos” vingativos, enquanto os donos do poder garantem que o jogo continue sempre o mesmo. A corrida desesperada de Manuel e sua esposa Rosa em direção ao mar, no final do filme, é a imagem perfeita de um país que continua correndo sem saber para onde, fugindo de um passado brutal em busca de um futuro que nunca chega. A frase que ecoa no filme, “a terra é do homem, nem de Deus nem do Diabo”, segue sendo o grande projeto inacabado do Brasil. A fúria de Glauber foi a de um profeta, que não apenas filmou o seu tempo, mas criou um espelho eterno e doloroso para o nosso.

Cinema Soviético e Russo

“Tigre Branco” e a Caçada Implacável ao tanque fantasma que assombrou a Segunda Guerra

Filmes sobre a Segunda Guerra Mundial geralmente nos mostram batalhas históricas, heróis corajosos e a luta clara entre o bem e o mal. O filme russo “Tigre Branco” (2012) ignora tudo isso para nos contar uma história muito mais estranha e assustadora. É um filme de guerra que se desenrola como uma fábula de terror, uma caçada mística a um monstro de aço que parece ser a própria encarnação do mal. A trama nos apresenta a um soldado soviético que nem deveria existir. Ivan Naydenov é encontrado dentro de um tanque destruído, com 90% do corpo queimado. Contra todas as probabilidades, ele sobrevive, mas perde a memória de quem era. Em troca, ele ganha um dom assustador e sobrenatural: ele consegue “falar com os tanques”. Ele ouve seus motores como vozes, sente sua presença e reza para um “Deus dos Tanques” pedindo proteção. Nascido do fogo da batalha, Naydenov se torna uma espécie de anjo vingador com uma única missão: caçar e destruir uma máquina que não deveria existir. O monstro desta história é o “Tigre Branco”, um tanque alemão que age como um fantasma nos campos de batalha da Frente Oriental. Ele aparece do nada, vindo da névoa, destrói dezenas de tanques russos com uma precisão impossível e desaparece sem deixar rastros. É aparentemente indestrutível, parece não ter tripulação e se move com uma inteligência maligna. O Tigre Branco não é apenas uma arma secreta, mas é a materialização da própria guerra, a personificação da ideologia nazista: uma máquina de matar fria, eficiente, perfeita e sem alma. Ele é o fantasma que assombra o exército russo. O que se segue não é uma batalha comum, mas uma caçada implacável e metafísica. Naydenov, com seu tanque modificado, se torna o único caçador capaz de enfrentar o Tigre Branco. O conflito vira um duelo pessoal entre dois seres míticos: o homem que renasceu do fogo para se tornar o profeta dos tanques contra a máquina que parece ser o próprio diabo da guerra. Suas batalhas são tensas, estranhas e ritualísticas, uma dança mortal entre o espírito ferido da Rússia e a alma mecânica e impiedosa do fascismo. Onde o filme realmente nos choca é em seu final. Em qualquer outro filme, o herói destruiria o monstro em uma batalha final épica. Mas aqui, isso não acontece. A guerra acaba, os russos vencem, Berlim cai, mas o Tigre Branco nunca é derrotado. Ele simplesmente desaparece na floresta, ileso. Naydenov, inconformado, avisa a seus superiores que a caçada não terminou. Ele diz que o monstro apenas se escondeu e que voltará “em vinte anos, ou em cinquenta, ou em cem”. Essa conclusão perturbadora revela a verdadeira mensagem do filme. O Tigre Branco nunca foi apenas um tanque. Ele é o símbolo da própria ideia da guerra, do ódio e do fascismo. Você pode vencer exércitos e conquistar cidades, mas nunca pode matar completamente essa ideia. Ela apenas se esconde, espera o tempo passar e as pessoas se esquecerem, para então retornar, talvez com um novo nome e uma nova forma, mas com a mesma sede de destruição. “Tigre Branco” é um filme de guerra que usa o sobrenatural para nos dar um alerta sombrio: a verdadeira batalha não termina com a assinatura de um tratado de paz, pois o fantasma da guerra nunca é verdadeiramente exorcizado. Ele está sempre à espreita.

Cinema Soviético e Russo

Kurosawa na Sibéria: Um Mestre Japonês que filmou a alma soviética em “Dersu Uzala”

No auge da Guerra Fria, algo quase impensável aconteceu: Akira Kurosawa, o maior diretor do Japão, famoso por seus filmes de samurai, foi convidado pela União Soviética para ir até a Sibéria filmar uma história profundamente soviética. O resultado foi “Dersu Uzala” (1975), uma obra-prima que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e levantou uma questão fascinante: como um mestre japonês conseguiu capturar a alma soviética de forma tão perfeita? Eu diria que a está em uma linguagem que ultrapassa fronteiras: a do humanismo e do profundo respeito pela natureza. O filme nos conta a história real da amizade entre dois homens de mundos completamente opostos. De um lado, temos o Capitão Arsenyev, um explorador e cientista soviético, o homem da civilização, da lógica e dos mapas. Do outro, temos Dersu Uzala, um caçador nômade da tribo Nanai, um homem da natureza, que vive pelo instinto e por uma sabedoria ancestral. Dersu não vê a natureza como um objeto de estudo. Para ele, o fogo, a água e o vento são “gente”, seres vivos que merecem respeito. O encontro desses dois homens no coração da vasta e selvagem Sibéria dá início a uma das mais belas amizades da história do cinema. A Sibéria não é apenas um cenário no filme. Ela é o terceiro personagem principal. Kurosawa, com seu olhar de mestre, filma a natureza como uma força de duas faces: de uma beleza estonteante, com seus pores do sol dourados e florestas cobertas de neve, mas também de uma brutalidade implacável. Em uma das cenas mais famosas e angustiantes do cinema, Arsenyev e Dersu se perdem em um lago congelado enquanto uma nevasca avassaladora se aproxima. É o conhecimento de Dersu sobre como sobreviver, usando os poucos recursos da natureza para construir um abrigo em minutos, que salva a vida de ambos. Ali, a ciência do Capitão não vale nada. Apenas a sabedoria ancestral do caçador importa. É nesse ponto que o olhar japonês de Kurosawa se conecta perfeitamente com a alma soviética da história. A cultura japonesa, com suas raízes no xintoísmo, possui uma reverência profunda pelos espíritos da natureza, algo que espelha perfeitamente a visão de mundo de Dersu. Kurosawa não precisou “fingir” entender essa conexão. Ela já fazia parte de sua própria sensibilidade cultural e artística. Ele filmou a Sibéria com o mesmo respeito com que filmaria as florestas místicas de seus filmes de samurai. Além disso, a história de “Dersu Uzala” é, em sua essência, um drama humanista universal, o grande tema da carreira de Kurosawa. O filme fala de amizade, lealdade, envelhecimento e da tristeza de ver um modo de vida desaparecer. A tragédia final do filme é o que eleva a história. Quando a visão de Dersu começa a falhar, ele não pode mais caçar e é forçado a se mudar para a cidade com a família do Capitão. E, assim como um animal selvagem, ele não consegue viver enjaulado. As regras, as cercas e o barulho da civilização o sufocam. Eu diria que a sua morte, solitária e sem sentido no mundo dos homens, é um comentário poderoso sobre o avanço da modernidade que esmaga a sabedoria antiga. Kurosawa conseguiu filmar a alma russa porque ele olhou para além das nacionalidades e encontrou uma verdade universal. Ele usou sua sensibilidade japonesa para com a natureza e seu profundo humanismo para contar a história de um caçador siberiano e um explorador russo. “Dersu Uzala” é a prova de que o verdadeiro cinema não tem pátria e que a linguagem do coração é capaz de unir qualquer cultura, atravessando até mesmo a Cortina de Ferro. É um filme feito por um mestre japonês, com uma alma soviética, que fala diretamente a toda a humanidade.

Cinema Soviético e Russo

“Vá e Veja”: O melhor filme de guerra é, na verdade, o maior filme de horror

Muitas pessoas pensam que filmes de guerra são sobre heróis, batalhas, estratégias e o triunfo do bem contra o mal, mas o filme soviético “Vá e Veja” (1985), joga tudo isso fora para nos mostrar uma verdade muito mais aterrorizante. Ele defende uma ideia poderosa e perturbadora: a de que a guerra não é uma aventura ou um drama, mas sim a mais pura e absoluta forma de horror. Por isso, o melhor filme (na minha opinião) já feito sobre a guerra é, na verdade, o maior filme de horror da história do cinema. A história nos leva até Flyora, um garoto de Belarus que vive sob a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. No início ele é um menino como qualquer outro: cheio de idealismo, sonhando em se tornar um herói e se juntar à resistência para lutar por seu país. Mas a partir do momento em que ele deixa sua casa, o filme nos arrasta junto com ele para uma jornada de pesadelo, uma descida ao inferno da qual não há escapatória. Nós somos forçados a fazer o que o título manda: ir e ver. E o que vemos é genuinamente perturbador. O grande trunfo do filme é tratar a guerra não como um conflito, mas como o monstro de um filme de terror. O monstro aqui não é uma criatura sobrenatural, mas a própria guerra, uma força invisível e enlouquecedora que destrói tudo o que toca: vilarejos, famílias, a natureza e, principalmente, a sanidade de quem vive e viveu. Os soldados nazistas que aparecem no filme são apenas a forma física desse monstro, seus agentes que realizam atos de uma crueldade tão extrema que parecem saídos de uma fantasia demoníaca, e não da realidade. Flyora é a principal vítima desse monstro. Em vez de se tornar o herói que sonhava, ele é completamente aniquilado psicologicamente. A transformação em seu rosto é o efeito especial mais chocante do cinema: em poucos dias, seu olhar perde o brilho, sua pele enruga e ele se torna um velho no corpo de um menino. Isso não é desenvolvimento de personagem, mas a destruição de uma alma. É o que os filmes de horror fazem com suas vítimas: eles as quebram. Flyora é quebrado de uma forma que nunca mais terá conserto. Para criar essa sensação, o diretor Elem Klimov usa todas as ferramentas do horror: O som do filme é desorientador, nos deixando surdos junto com o protagonista após uma explosão. As imagens são surreais, como um sonho ruim que se recusa a terminar. Não existem sustos fáceis. O terror de “Vá e Veja” é paciente, sufocante. A cena mais famosa e terrível, em que um vilarejo inteiro é trancado dentro de uma igreja e queimado vivo, é aterrorizante não pelo que mostra, mas pelo que nos faz sentir: a total impotência diante da barbárie, enquanto os perpetradores riem, dançam e celebram. É um mergulho no abismo da maldade humana. No fim, “Vá e Veja” se consagra como o maior filme de guerra justamente por se recusar a ser um. Ele arranca todas as fantasias de glória e heroísmo e nos obriga a encarar o rosto nu e gritante da guerra. E esse rosto é o do mais puro horror. Filmes de terror comuns nos assustam com monstros imaginários por algumas horas. “Vá e Veja” nos mostra o monstro real que existe dentro da humanidade e essa é uma imagem que, uma vez vista, jamais será esquecida. É um filme que você não apenas assiste, mas sobrevive a ele. E vale a pena, ironicamente.

Cinema Italiano

Fellini, do Realismo ao Sonho: Uma jornada pela transição de Federico Fellini, de “A Estrada da Vida” a “8 e Meio”

Federico Fellini foi um dos maiores diretores de cinema da Itália, um verdadeiro gênio que mudou completamente seu jeito de fazer filmes ao longo da carreira. Ele começou mostrando a vida como ela era, com toda a sua dureza, e depois passou a fazer filmes que pareciam sonhos, cheios de imaginação e memória. A melhor forma de entender essa incrível transformação é olhar para dois de seus filmes mais famosos: “A Estrada da Vida” (1954) e “8 e Meio” (1963). No começo de sua carreira, Fellini fez “A Estrada da Vida”. Naquela época a moda no cinema italiano era um estilo chamado Neorrealismo, que focava em mostrar a vida difícil dos pobres depois da guerra. E o filme parece seguir essa regra: ele conta a história de Zampano, um artista de rua brutamontes, e Gelsomina, uma moça ingênua, enquanto eles viajam por uma Itália pobre. Mas Fellini já fazia algo diferente: Em vez de focar só na miséria, ele transformou a história em uma espécie de poema triste, quase um conto de fadas, se importando mais com os sentimentos e a alma dos personagens. Ele já estava começando a misturar a realidade com um toque de magia. Anos depois, essa mistura explodiu em sua obra-prima, “8 e Meio”. Se “A Estrada da Vida” ainda tinha os pés na realidade, “8 e Meio” mergulha de cabeça no mundo dos sonhos. O filme é sobre um diretor de cinema famoso, chamado Guido, que está em crise porque não consegue ter ideias para seu novo filme. Esse personagem, na verdade, é o próprio Fellini se retratando na tela. A história é toda misturada, pulando da realidade para as memórias de infância e para as fantasias de Guido, do mesmo jeito que nossos pensamentos pulam de uma coisa para outra. O cenário principal não é mais a Itália, mas a confusão dentro da cabeça do artista. A jornada de um filme para o outro mostra a libertação de Fellini como artista. Ele percebeu que não precisava mais mostrar apenas o mundo de fora, mas ele podia explorar o fascinante mundo de dentro de nós mesmos. O final dos dois filmes mostra bem essa diferença. Em “A Estrada da Vida”, a grande emoção é uma cena real e muito triste, com Zampano chorando sozinho na praia. Já em “8 e Meio”, o final é uma grande festa que parece um sonho, onde o diretor Guido aceita toda a sua confusão interna e celebra a vida. Com essa mudança, Fellini não só se tornou um mestre, como também ensinou ao mundo que os filmes poderiam fazer algo novo. Eles poderiam sair das estradas poeirentas da vida real para entrar no grande e maravilhoso circo que existe dentro da nossa mente.

Cinema Italiano

Ettore Scola e a Nostalgia do Encontro: O terraço e o baile como palcos da memória coletiva italiana

Enquanto muitos cineastas buscam vastas paisagens para contar suas histórias, o mestre italiano Ettore Scola preferia o caminho inverso: ele concentrava um grupo de pessoas em um único lugar e, através de suas interações, revelava a alma de uma nação inteira. Seus filmes são movidos por uma profunda “nostalgia do encontro”, uma saudade não apenas do passado, mas da sensação de estarmos juntos, compartilhando ideias, amores e decepções em um mesmo espaço físico, mesmo que o tempo e a história nos tenham transformado por dentro. Ao manter o palco fixo, Scola evidenciava de forma brilhante as mudanças nas pessoas, mostrando como as paredes permanecem enquanto os sonhos, as ideologias e as relações humanas se alteram drasticamente com a passagem das décadas. Essa técnica atinge um de seus ápices em “O Terraço” (1980). O filme nos convida para um jantar em um luxuoso terraço romano, onde se reúne um grupo de velhos amigos intelectuais de esquerda, agora na casa dos cinquenta anos. Na juventude eles sonharam em mudar a Itália, mas o encontro anual se tornou um ritual melancólico. O terraço, que deveria ser um lugar aberto e arejado, se transforma em uma gaiola de ouro onde eles confrontam seus fracassos pessoais e políticos. Nas conversas cheias de ironia e ressentimento, o diretor expõe a memória coletiva de uma geração, refletindo a crise da esquerda italiana nos anos 70. As grandes esperanças do pós-guerra deram lugar a um profundo cinismo, e o encontro se torna um palco para os fantasmas dos ideais que eles sentem ter traído. Se em “O Terraço” a palavra é a arma da desilusão, em “O Baile” (1983), Scola realiza um feito ainda mais radical e poético. Dentro de um único salão de dança, ele narra cinquenta anos de história sem usar uma única palavra de diálogo. Acompanhamos a vida daquele lugar desde a esperança da Frente Popular nos anos 30, passando pela tensão da ocupação nazista, pela alegria da libertação ao som do swing, pela rebeldia do rock’n’roll nos anos 60, até a solidão da era disco. Os mesmos atores interpretam diferentes personagens em cada época, e a história é contada unicamente pela música, pela dança e pelos olhares. O baile se torna a memória viva da sociedade, um palco para encontros constantes onde pequenas histórias de amor e ciúme refletem as grandes transformações do lado de fora. O filme é a mais pura celebração da necessidade humana de se encontrar e se conectar, mostrando como essa força persiste através das guerras e revoluções. O cinema de Ettore Scola nos toca tão profundamente porque ele entendeu que a história de um país não é feita apenas de grandes eventos, mas de milhões de pequenos encontros. Seus filmes capturam a nostalgia de um tempo em que as pessoas se reuniam para debater, dançar e sonhar juntas, mesmo que esses sonhos muitas vezes terminassem em desilusão. Eles são um poderoso lembrete de que nossas memórias pessoais estão sempre amarradas a uma memória coletiva, e que, às vezes, um terraço em Roma ou um salão de dança podem contar a história de uma nação de forma mais íntima e verdadeira que qualquer livro de história.

Cinema Italiano

A trilha sonora como personagem: A parceria icônica entre Sergio Leone e Ennio Morricone no Western Spaghetti

Imagine um duelo de faroeste. O sol forte, a poeira, os pistoleiros se encarando… O silêncio é quase total. Mas então, você ouve um assobio solitário, o som de um sino distante, o toque de uma guitarra elétrica. De repente, a cena não é mais sobre quem saca a arma mais rápido. É sobre destino, honra e morte. Essa mágica tem nome e sobrenome: Sergio Leone e Ennio Morricone. Nos clássicos Westerns Spaghetti dos anos 60, como a Trilogia dos Dólares (“Por um Punhado de Dólares”, 1964; “Por uns Dólares a Mais”, 1965; e “Três Homens em Conflito”, 1966), o diretor Leone e o compositor Morricone revolucionaram o cinema. Eles pegaram o faroeste americano, que tinha uma música heróica e orquestrada, e o transformaram em uma ópera suja, estilizada e inesquecível. E o segredo deles foi simples: tratar a trilha sonora como um personagem principal. Os heróis de Sergio Leone, especialmente o “Pistoleiro Sem Nome”, interpretado por Clint Eastwood, são famosos por serem calados. Eles quase não falam e seus rostos são como máscaras de pedra. Como saber o que eles estão pensando ou sentindo? A resposta está na música de Morricone. O assobio melancólico, a flauta solitária ou o som da guitarra são a voz interior do personagem. A música nos conta sobre sua solidão, seu perigo iminente ou sua determinação implacável. Sem a trilha sonora, Clint Eastwood seria apenas um homem calado. Com ela, ele se torna um mito. Morricone foi um gênio em criar uma identidade sonora para cada personagem, como se a música fosse o seu cartão de visitas. O melhor exemplo disso é “Três Homens em Conflito”: O bom, tendo sua chegada é anunciada por uma flauta suave, quase como um som angelical no meio do inferno; O mau, tendo sua tema é um som gutural de duas notas, que soa como um grito de coiote ou um presságio da morte. É a assinatura do predador; e o feio, que seu tema é o mais humano e cômico, refletindo sua personalidade astuta e imprevisível. Você não precisa ver os personagens na tela. Ao ouvir a música você já sabe quem está em cena, quem está chegando ou em quem a história está focada. A música os apresenta e os define. Descobri que na maioria dos filmes a música é composta depois que as cenas são filmadas, para se encaixar nas imagens. Leone e Morricone inverteram esse processo e isto faz todo o sentido no processo criativo. Morricone criava os temas principais apenas lendo o roteiro. Leone então ia para o set de filmagem e tocava a música em alto-falantes durante as gravações. Os atores usavam a música para encontrar o ritmo da cena, o tempo certo para um olhar, para um passo, para sacar a arma. As cenas, especialmente os longos e tensos duelos, eram coreografadas de acordo com a trilha sonora. Isso prova que a música não era um enfeite, mas a fundação sobre a qual as cenas eram construídas. Era a espinha dorsal do filme. A prova final dessa parceria é o icônico duelo de três homens no final de “Três Homens em Conflito”. A cena dura mais de cinco minutos, com pouquíssima ação. São apenas homens se encarando, com closes extremos nos olhos. O que a torna uma das maiores cenas da história do cinema é a música. A faixa “The Trio” começa devagar, com a tensão crescendo a cada nota da guitarra, do piano, das trombetas, até explodir em um clímax operístico. Sem a música, seria uma cena longa e parada. Com a música, ela se torna uma ópera sobre a ganância, a tensão e o destino. Leone nos deu a imagem inesquecível do Velho Oeste: os rostos suados, os olhos cerrados, as paisagens áridas. E Ennio Morricone quem nos deu a alma desse mundo. A parceria deles é a prova definitiva de que, no cinema, o som pode ser tão poderoso quanto a imagem.

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“Cinema Paradiso”: A Cabine da Memória e o amor como projeção

Existem filmes que nós simplesmente assistimos. E existe “Cinema Paradiso”, um filme que nós sentimos. Sou suspeito para falar a respeito, dado que é o meu filme favorito, mas é mais do que uma história. É uma explosão de saudade, uma carta de amor à magia do cinema e uma reflexão sobre como as nossas memórias e nossos amores são moldados pelas histórias que vemos na tela. O filme nos leva a um pequeno vilarejo na Sicília, logo depois da guerra, onde a única janela para o mundo, a única fuga da realidade dura, era a tela do “Cinema Paradiso”. É lá que se desenrolam as duas grandes ideias do filme: a cabine do cinema como um baú de memórias e o amor como uma projeção dos nossos sonhos. O coração do filme não é a sala de cinema, mas a pequena e apertada cabine de projeção. Para o menino Totò, aquele lugar era o centro do universo. Ali, o seu melhor amigo e figura paterna, Alfredo, o projecionista, operava a “mágica”. Essa cabine é a grande metáfora do filme: Alfredo não era só um funcionário, mas o feiticeiro que controlava a luz, as sombras e as emoções de toda a cidade. A partir daquela pequena janela, ele projetava beijos, aventuras e dramas que alimentavam a alma dos moradores. Foi ali, entre rolos de filme e o barulho do projetor, que Totò aprendeu sobre o mundo. Ele não apenas via os filmes, ele os vivia. Cada cena cortada pela censura do padre, cada rosto de um astro de Hollywood, cada suspiro da plateia formou o seu caráter e a sua visão de mundo. O filme inteiro é um grande flashback. Totò, já um cineasta famoso, volta no tempo em sua própria mente. A cabine de projeção do Cinema Paradiso é, na verdade, a sua própria memória, o lugar quentinho e barulhento onde as lembranças mais importantes de sua vida foram “filmadas” e guardadas. Quando Totò se apaixona pela primeira vez, pela bela Elena, o cinema continua sendo o palco principal. O amor dele é, literal e metaforicamente, uma projeção. O romance deles acontece sob a luz do projetor. Ele a vê pela primeira vez no cinema, a corteja com referências de filmes e vive seu amor tendo o cinema como cenário. A vida imita a arte. Mais profundamente, a ideia que Totò tem do amor foi construída a partir dos beijos perfeitos e dos finais felizes que ele viu na tela. Ele projeta em Elena o ideal da heroína romântica. Ele não quer apenas amar, ele quer viver um amor de cinema, com toda a sua intensidade e drama. É aqui que entra a sabedoria amarga de Alfredo com a frase mais importante do filme: “A vida não é como no cinema. A vida é muito mais difícil.” Alfredo sabe que, para Totò ter uma vida real, ele precisa sair daquela “projeção” maravilhosa que é o vilarejo. Ele o força a partir, a abandonar as memórias e o amor idealizado para encontrar a sua própria história no mundo real, mesmo que seja mais dura. A cena final de “Cinema Paradiso” é uma das mais emocionantes da história do cinema. Totò, de volta ao cinema agora abandonado, recebe um último presente de Alfredo: um rolo de filme. No escuro de uma sala moderna, ele assiste à projeção. E o que há na tela? Todos os beijos que o padre mandou Alfredo cortar dos filmes durante décadas. É uma montagem ininterrupta de puro amor, de toda a paixão que foi censurada mas nunca esquecida. Nesse momento, Totò não está apenas vendo cenas de filmes antigos. Ele está vendo a projeção de sua própria vida: o amor de Alfredo, de Elena e sua paixão pelo cinema. Enquanto ele chora e sorri, entendemos que “Cinema Paradiso” é sobre todos nós. Todos temos uma “cabine de memória” onde guardamos os momentos que nos formaram. E todos nós, em algum momento, já projetamos nos outros o amor que aprendemos a sonhar vendo filmes. É uma carta de amor imortal àquela luz mágica que, saindo de uma pequena cabine, é capaz de iluminar toda a nossa vida.

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Vittorio De Sica e a busca pela dignidade humana, de “Ladrões de Bicicleta” a “Umberto D.”

Vittorio de Sica foi o poeta das pessoas comuns. Ele não estava interessado em heróis, vilões ou histórias de glamour. Sua câmera buscava o trabalhador, o aposentado, a criança, o desempregado… E em todas as suas histórias, ele fazia uma pergunta fundamental: o que resta a uma pessoa quando a vida lhe tira quase tudo? A resposta era sempre a mesma: a luta pela própria dignidade. Para De Sica, a dignidade não era ter dinheiro ou poder. Era algo muito mais simples e profundo: era o direito de ser tratado com respeito, de poder sustentar a família e de não ser invisível para a sociedade. Seus filmes mais famosos são aulas sobre essa batalha. Para contar essas histórias, ele se tornou um dos pais do que viria a se tornar o Neorrealismo Italiano. E isso era, basicamente, um jeito novo de fazer cinema, que rompia com a falsidade de Hollywood. As regras eram simples: Filmar nas ruas de verdade: Nada de estúdios. A cidade, com suas feridas do pós-guerra, era o cenário. Usar pessoas comuns: Em vez de atores famosos, ele escalava gente do povo, porque acreditava que eles traziam uma verdade que nenhum ator profissional conseguiria imitar. Contar histórias reais: Os roteiros eram sobre os problemas do dia a dia, como desemprego, pobreza, solidão, injustiça… Esse estilo era a ferramenta perfeita para buscar a emoção crua e a dignidade de seus personagens. A dignidade de um pai em “Ladrões de Bicicleta” (1948) Este é talvez o filme mais famoso do De Sica e a expressão perfeita de sua busca. A história é dolorosamente simples: em uma Roma destruída pela guerra, Antonio Ricci, um pai de família desempregado, consegue um emprego para colar cartazes. A condição é que ele tenha uma bicicleta. Com muito sacrifício ele recupera a sua, que estava penhorada. Mas, no seu primeiro dia de trabalho, a bicicleta é roubada. O resto do filme é a busca desesperada de Antonio e seu filho pequeno, Bruno, pela bicicleta. Mas a busca é por algo muito maior: A bicicleta não é só uma bicicleta – Ela representa esperança, o pão na mesa, a chance de ser um provedor. É o símbolo da dignidade de Antonio como trabalhador e pai. A jornada com o filho – A parte mais comovente é ver a relação dos dois. O pai tenta manter a força na frente do filho, mas a vergonha e o desespero o consomem. E o pequeno Bruno vê o seu herói, o seu pai, desmoronar aos poucos. A perda da inocência – O momento mais terrível é quando Antonio, no auge do desespero, pensa em roubar outra bicicleta. É o ponto em que ele corre o risco de perder não só o emprego, mas a sua própria honra na frente do filho. O filme nos deixa com o coração na mão porque nos faz sentir a humilhação e a luta daquele homem para simplesmente continuar sendo um homem digno. A dignidade na velhice em “Umberto D.” (1952) Se “Ladrões de Bicicleta” é sobre a dignidade do trabalhador, “Umberto D.” é sobre a dignidade na velhice. Dizem que este era o filme preferido do De Sica e é fácil entender o por quê. A história acompanha Umberto, um funcionário público aposentado que não consegue pagar o aluguel com sua mísera pensão e está prestes a ser despejado. Seu único amigo no mundo é seu cachorrinho, Flike. A luta de Umberto é silenciosa e solitária. Ele tem vergonha de pedir esmola, tenta vender seus livros, procura um lugar para deixar seu cão. O que o filme mostra é a batalha de um homem para não ser tratado como um objeto inútil, para não ser descartado pela sociedade depois de uma vida inteira de trabalho. Umberto não quer caridade, ele quer o respeito que merece. Sua briga é para continuar existindo aos olhos do mundo. E a relação com Flike é o coração do filme. O cachorrinho é a única coisa que impede Umberto de desistir de tudo. É o seu último laço de afeto, o que mantém sua humanidade viva. Cuidar de Flike é a sua última missão digna. O grande legado de Vittorio De Sica é o seu olhar de profunda compaixão. Ele filmava seus personagens sem julgamento, mostrando suas falhas e sua grandeza. Seus filmes são um soco no estômago, mas também um abraço, pois nos lembram da importância de olhar para o outro com empatia. Aprendi que as maiores batalhas da vida muitas vezes não são por riqueza ou as glórias mundanas, mas pela simples e fundamental dignidade humana, e acho que essa é uma lição que o cinema nunca vai esquecer.

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