Enquanto a ficção científica de Hollywood olhava para as estrelas em busca de aventura, espetáculo e batalhas espaciais, o cinema soviético frequentemente usava o espaço sideral como um pretexto para uma viagem muito mais complexa e profunda, a jornada para dentro da alma humana.
Longe de ser apenas sobre foguetes e alienígenas, o gênero na União Soviética se tornou um palco para reflexões filosóficas, onde as maiores obras, como “Solaris” (1972) e “Stalker” (1979) de Andrei Tarkovsky, usaram o futuro e o desconhecido para fazer as perguntas mais antigas e essenciais sobre a nossa própria existência.
Nos primeiros anos da União Soviética, a ficção científica era frequentemente utópica, celebrando o triunfo da ciência e do comunismo em futuros perfeitos e tecnologicamente avançados. Contudo, com o passar do tempo, cineastas mais ousados começaram a usar a distância do gênero para explorar as rachaduras desse sonho. O maior mestre dessa ficção científica filosófica foi Andrei Tarkovsky.
Para ele, o gênero era apenas uma moldura para pintar seus quadros sobre fé, memória, amor e a crise espiritual do homem moderno.
Em “Solaris” nós somos levados a uma estação espacial que orbita um misterioso planeta oceânico e consciente. A premissa parece ser de um clássico contato com extraterrestres, mas o filme rapidamente se revela outra coisa. O planeta Solaris começa a materializar “visitantes” na estação, que são cópias físicas de pessoas retiradas das memórias mais dolorosas dos tripulantes. O protagonista, o psicólogo Kris Kelvin, é assombrado pela aparição de sua esposa, que se suicidou anos antes por sua causa. A viagem ao espaço se transforma em uma viagem para dentro de sua própria culpa.
O filme não quer saber como nos comunicar com o alienígena, mas sim como nós podemos viver com os fantasmas da nossa própria consciência. “Solaris” usa um cenário futurista para argumentar que nós podemos cruzar a galáxia, mas jamais conseguiremos escapar de nós mesmos.
Sete anos depois, Tarkovsky nos levaria a outro lugar misterioso em “Stalker”. O filme se passa em um mundo desolado, onde existe uma “Zona” proibida, um lugar de natureza exuberante e anomalias físicas onde, supostamente, existe um quarto que realiza o desejo mais íntimo de quem entrar nele. Um guia, o “Stalker”, leva dois clientes, um Escritor cínico e um Professor pragmático, em uma jornada ilegal até o centro da Zona.
Novamente, a ficção científica é apenas o ponto de partida. A Zona não é um lugar físico, mas espiritual. A jornada até o quarto é uma peregrinação em busca de fé em um mundo que a perdeu completamente. Os três personagens representam a fé, a arte e a ciência, três pilares da alma humana em crise. A conclusão do filme é devastadora. Ao chegarem ao destino, eles não têm coragem de entrar, com medo do que seus verdadeiros desejos possam revelar.
É uma meditação profunda sobre esperança, cinismo e a dificuldade de se ter fé em um mundo que parece não oferecer milagres.
O legado da ficção científica soviética, especialmente a de Tarkovsky, é o de um cinema que valoriza a pergunta acima da resposta e a alma acima da tecnologia. Suas obras são lentas, poéticas e exigem a nossa paciência, mas nos recompensam com uma beleza e uma profundidade raras. Elas nos lembram que os maiores mistérios do universo não estão em planetas distantes ou em galáxias desconhecidas, mas sim dentro do coração humano.
A jornada em “Solaris” e “Stalker” não é sobre encontrar vida extraterrestre, mas sobre confrontar o território estranho, assustador e maravilhoso que existe dentro de nós.