“Vidas Secas”: Onde o sol queima a tela e o silêncio grita mais alto que a fome

A força cinematográfica de “Vidas Secas” (1963) reside em dois elementos brutais: o sol ofuscante que queima a tela e o silêncio profundo que grita mais alto que a fome. A obra prima de Nelson Pereira dos Santos, baseada no romance de Graciliano Ramos, é uma experiência quase física, um cinema que nos faz sentir sede e cansaço.

É um lugar onde o sol castiga a tela com sua luz branca e onde o silêncio dos personagens se torna um grito muito mais poderoso e desesperado do que a própria fome que os consome.

A estética do filme é a estética da sede.

Nelson Pereira dos Santos e o fotógrafo Luiz Carlos Barreto filmaram o sertão nordestino em um preto e branco de alto contraste, quase estourado. O sol não é uma fonte de vida, é um inimigo, um personagem onipresente que queima a terra, cega os olhos e pune os corpos.

A paisagem não é um cenário, mas uma prisão sem muros. As imagens da terra rachada, das árvores esqueléticas e do céu imensamente branco e vazio nos transmitem a pequenez e o desamparo daquela família de retirantes, tornando sua jornada cíclica e aparentemente sem fim.

Nesse ambiente brutal, as palavras parecem evaporar junto com a água. Os personagens, Fabiano, Sinhá Vitória e seus dois filhos, quase não falam. A comunicação entre eles é reduzida ao essencial, a gestos, a monossílabos e a grunhidos.

Essa escolha não é um simples recurso de estilo, é a tese central do filme sobre a desumanização. Fabiano luta internamente com a própria condição, pensando que deixou de ser homem para se tornar um “bicho”. A perda da linguagem, da capacidade de articular a própria dor e o próprio pensamento, é o sintoma mais profundo da opressão que ele sofre.

O sistema o esmagou a tal ponto que lhe roubou a ferramenta mais básica da humanidade, a palavra.

É por isso que o silêncio em “Vidas Secas” grita tão alto. Ele não é vazio, mas preenchido por séculos de miséria, de resignação e de uma dor que não encontra forma de ser expressa. É um silêncio político, o silêncio de um povo que foi historicamente calado. Os únicos sons que dominam o filme são os da natureza hostil, como o ranger agoniante da roda de um carro de boi, que se torna a trilha sonora daquela existência sofrida. A cachorrinha Baleia, em muitos momentos, parece ter uma vida interior mais rica e “humana” que a de seus donos, uma inversão trágica que apenas sublinha a profundidade da degradação a que a família foi submetida.

A fome que atormenta Fabiano e sua família é real e física, mas o filme nos mostra que existe uma fome ainda mais profunda: a fome de dignidade, de expressão e de sentido.

O silêncio é o som dessa fome espiritual. Ao se recusar a dar a seus personagens discursos de revolta ou lamentos dramáticos, Nelson Pereira dos Santos cria uma denúncia muito mais poderosa. O sofrimento mudo daquela família se torna um testemunho irrefutável e uma condenação silenciosa da estrutura social que lhes nega a própria condição de serem humanos.

“Vidas Secas” é uma obra difícil, por vezes dolorosa de assistir, mas absolutamente essencial.

É o trabalho de um mestre que compreendeu que as verdades mais cruéis do Brasil não precisavam ser ditas, mas sim vistas e sentidas. Ele fez o sol queimar a tela para nos mostrar uma terra sem piedade e usou o silêncio de seus personagens para nos fazer ouvir o mais eloquente e inesquecível grito por justiça da história do nosso cinema.

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