Poucas cidades foram filmadas de maneiras tão visceralmente opostas quanto a Roma de Roberto Rossellini e a de Federico Fellini.
Em um intervalo de apenas quinze anos, a capital italiana se transforma diante de nossos olhos, passando de um campo de batalha moral em “Roma, Cidade Aberta” (1945) para um circo existencial em “A Doce Vida” (1960). A mudança não é apenas estética, é a crônica de uma nação em transformação. Rossellini nos filma a alma da cidade em sua hora mais sombria, enquanto Fellini registra o vazio que se instala após a recuperação material.
Juntos, eles não apenas criaram obras-primas, mas nos entregaram um retrato duplo e definitivo da consciência italiana no século XX.
Em 1945, a Roma de Rossellini ainda cheira a pólvora e desespero. Filmado nas ruas recém-libertadas da ocupação nazista, o filme tem a urgência de um documento histórico. A câmera neorrealista não busca a beleza, ela busca a verdade nas cicatrizes da cidade. Nós não vemos os monumentos turísticos, mas sim os pátios de apartamentos populares, as vielas escuras e os porões onde a resistência se articula. A cidade é um organismo ferido, um labirinto onde cada esquina representa a escolha entre a traição e o sacrifício. A célebre cena da morte de Pina, interpretada por Anna Magnani, fuzilada em pleno asfalto, transforma a rua em um altar de martírio.
A Roma de Rossellini é uma cidade de luta coletiva, onde padres, comunistas e cidadãos comuns se unem contra um mal absoluto, encontrando um sentido trágico e nobre na sobrevivência e na solidariedade.
Quinze anos depois, a câmera de Fellini nos revela uma Roma completamente diferente. A pobreza deu lugar a um luxo entediado, e a luta pela liberdade foi substituída pela caça desesperada por uma distração. Em “A Doce Vida”, nós somos guiados por Marcello Rubini através de uma cidade que se tornou um palco para o espetáculo do vazio. A Via Veneto, com seus cafés e fotógrafos, é o novo centro do mundo, um lugar de aparências e conversas frívolas. Fellini filma a Fonte de Trevi não como um marco histórico, mas como um cenário para a fantasia inalcançável de uma estrela de cinema. A cidade de Fellini é um deserto espiritual disfarçado de festa perpétua. Seus personagens são profundamente solitários, vagando por festas decadentes e apartamentos suntuosos, incapazes de criar uma conexão real.
A luta não é mais contra um inimigo externo, mas contra o nada que corrói tudo por dentro.
Apesar da distância que os separa, os dois filmes se conectam por uma busca por sentido em meio a uma crise. Em “Roma, Cidade Aberta”, o sentido é encontrado na fé e no sacrifício pela comunidade, apontando para uma possível redenção após a devastação da guerra. O fuzilamento do padre Don Pietro no final do filme é um ato de esperança, uma semente para a reconstrução moral da Itália.
Já em “A Doce Vida”, a busca de Marcello é infrutífera. O filme termina com a imagem de um monstro marinho grotesco na praia, um símbolo da decadência moral que ele não pode mais ignorar. Ele vê o aceno de uma jovem pura e inocente do outro lado de um riacho, mas não consegue mais ouvir ou entender sua mensagem.
Rossellini nos mostrou uma cidade que lutava por sua alma e Fellini nos mostrou uma cidade que, ao encontrar o sucesso, talvez a tenha perdido para sempre.