“Branco Sai, Preto Fica”: A Ficção Científica da periferia como arma de reparação histórica

A ficção científica de Adirley Queirós não busca estrelas distantes, ela aponta suas lentes para as feridas abertas da história brasileira.

Em “Branco Sai, Preto Fica” (2014), naves espaciais improvisadas e implantes cibernéticos não servem para nos transportar para outro mundo, mas para nos forçar a encarar a realidade brutal de Ceilândia, na periferia de Brasília. O filme parte dos estilhaços de um evento real de violência policial para construir um manifesto poderoso e inventivo. Nós somos apresentados a uma obra que se apropria da linguagem do futuro para acertar as contas com o passado, transformando o cinema em uma arma de reparação, memória e insurreição.

A memória central do filme é uma ferida que nunca cicatrizou.

Em 1986, um baile de black music conhecido como Quarentão foi alvo de uma batida policial racista, que deixou vários feridos, incluindo o personagem Marquim do Tropa, baleado e paraplégico. O título do filme é o grito de ordem dado pela polícia naquele dia. Queirós não aborda esse trauma com o distanciamento de um documentário tradicional. Ele convoca os próprios sobreviventes, Marquim e Shockito, para interpretarem versões futuristas de si mesmos, borrando as fronteiras entre realidade e ficção. Eles não são vítimas passivas de uma tragédia, são os protagonistas de sua própria saga de resistência.

É para dar conta dessa resistência que a ficção científica se torna uma ferramenta essencial, quase uma necessidade.

O gênero permite a Queirós quebrar a lógica do ressentimento e da vitimização. Um homem do futuro, Dimas, é enviado à Ceilândia para investigar o crime de Estado ocorrido no Quarentão. Marquim, agora com pernas biônicas, comanda uma rádio pirata de dentro de seu quarto, transmitindo música e denúncias. A ficção científica aqui é uma “gambiarra”, uma tecnologia precária e genial que reflete a própria capacidade de reinvenção da periferia. Nós entendemos que essa não é uma fantasia de fuga, mas uma estratégia de luta, um modo de reimaginar a própria história para dar a seus heróis a agência que a realidade lhes roubou.

A principal arma nessa luta é o som. A música black dos anos 80, que era o alvo da repressão, se torna a munição da revolta.

O objetivo da missão de Dimas é coletar provas para detonar uma bomba sonora no Plano Piloto, o centro do poder político em Brasília. O filme constrói uma tese poderosa. A reparação histórica não virá dos tribunais ou do governo, mas da explosão da cultura da periferia no coração de quem sempre tentou silenciá-la. O som é a memória, e a música é o veículo da história que se recusa a ser esquecida. Nós somos levados a sentir o poder de um sound system como um instrumento de poder político.

“Branco Sai, Preto Fica” é, portanto, um ato de profunda coragem cinematográfica e política.

Adirley Queirós e seus colaboradores não pedem licença para contar sua própria história, eles a reescrevem com as ferramentas que criam, forjando um futuro a partir de um passado roubado. O filme se torna a própria reparação que ele narra, um dispositivo que devolve a voz e a força àqueles que o Estado tentou apagar.

Ele nos mostra que, às vezes, para entender o presente e construir um futuro justo, nós precisamos da ousadia de imaginar o impossível.

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