O escritor Nelson Rodrigues diagnosticou uma das doenças mais crônicas da alma brasileira, o “Complexo de Vira-Lata”, aquela sensação de inferioridade que nos faz acreditar que tudo o que é estrangeiro é inerentemente superior. O filme “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um coquetel molotov cinematográfico jogado diretamente sobre essa ferida. A obra não propõe uma reflexão pacífica sobre nossa identidade. Ela oferece um tratamento de choque, uma cura brutal e catártica para esse mal, uma cura administrada não com discursos, mas com balas.
O filme primeiro nos apresenta um diagnóstico preciso da doença. Os vilões são um grupo de caçadores estrangeiros, na maioria americanos, que veem o sertão brasileiro como um playground exótico para seu safári humano. Para eles os moradores de Bacurau não são pessoas, são alvos, uma forma de vida inferior que pode ser eliminada por esporte.
Essa é a mentalidade colonialista em sua forma mais pura.
Pior ainda são os dois colaboradores brasileiros, vindos do sudeste, que guiam os gringos. Eles são a personificação do Complexo de Vira-Lata, indivíduos que desprezam suas próprias raízes, imitam o estrangeiro e sentem prazer em participar do massacre de seus compatriotas para se sentirem parte do mundo “superior”. O filme os trata com um desprezo ainda maior do que aos próprios assassinos.
Em oposição direta a essa doença, nós temos o antídoto: a própria comunidade de Bacurau.
A cidade é um microcosmo de um Brasil que se recusa a ser submisso. Seus moradores celebram sua própria cultura, honram sua história de resistência em um museu que é também um arsenal e vivem com um senso de solidariedade e autonomia feroz. Bacurau foi literalmente apagada do mapa pelo político corrupto que a vendeu aos estrangeiros, mas a cidade se recusa a ser invisível. Essa identidade forte e orgulhosa é a base para a resistência que está por vir.
Quando o ataque começa, a terapia de choque tem início. O povo de Bacurau não reage com medo ou súplica. Eles se organizam, unem forças com figuras antes marginalizadas como o fora da lei Lunga e respondem com uma violência calculada, inteligente e ainda mais selvagem que a de seus agressores. A violência em “Bacurau” é um ato político, uma declaração de soberania. Cada tiro disparado pelos moradores é um grito que diz “nós não somos suas vítimas”, “nós não somos inferiores” e “esta terra tem dono”. A caça se inverte de forma espetacular, e a cura do complexo de vira-lata começa com a recusa visceral do papel de presa.
O filme sugere que a cura completa exige um expurgo. O destino dos caçadores estrangeiros é uma vingança anticolonial direta. Mas a execução dos traidores brasileiros é tratada como um ato ainda mais significativo. É a remoção cirúrgica e violenta do “vira-lata” de dentro do corpo nacional, a ideia de que a subserviência interna precisa ser eliminada para que a nação possa lutar contra o inimigo externo.
“Bacurau” é, portanto, uma alegoria poderosa sobre o Brasil. Ele identifica o Complexo de Vira-Lata no desprezo com que o mundo nos vê e na servidão com que parte de nós aceita esse olhar. E então, ele propõe uma cura a bala. Uma cura que é uma metáfora para um despertar nacional, para uma afirmação agressiva de identidade e para a retomada da própria agência.
É a fantasia de um Brasil que se cansa de ser o quintal do mundo e que, com as próprias mãos, decide que não é um vira-lata, mas um pássaro bravo que sabe muito bem como se defender.