Para dar conta de um país sem caráter, o cinema precisou de um herói que fosse a sua imagem e semelhança.
“Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, não tenta nos oferecer um retrato idealizado ou coerente do Brasil, pelo contrário, ela mergulha de cabeça em nossas contradições e nos devolve um espelho quebrado, grotesco e absolutamente genial. O filme abraça o conceito modernista da antropofagia, a ideia de devorar todas as nossas influências culturais para criar algo novo, e o transforma em método. Nós somos convidados a um banquete cinematográfico que é ao mesmo tempo uma celebração e uma autópsia, a mais indigesta e honesta representação da identidade fraturada da nação.
O protagonista, Macunaíma, não é um homem, é um apetite ambulante.
O “herói sem nenhum caráter” nasce na Amazônia e sua jornada da selva para a cidade grande é movida por uma voracidade pura, seja por comida, sexo ou riqueza. Ele é preguiçoso, egoísta, esperto e ingênuo, uma encarnação de todos os nossos clichês e paradoxos. O próprio filme se comporta como seu herói. Ele devora sem critério a mitologia indígena, os ritos afro-brasileiros, a cultura de massa urbana, a pornochanchada e o cinema de vanguarda. Tudo é mastigado e regurgitado em uma colagem alucinante que recusa a lógica e a ordem, espelhando a formação sincrética do próprio Brasil.
Realizado no período mais brutal da ditadura militar, o filme usa essa estrutura rapsódica como uma poderosa arma de alegoria política. A viagem de Macunaíma é uma descida ao coração de um país que vivia o “milagre econômico” à custa da violência e da desigualdade. O vilão, o gigante industrial Venceslau Pietro Pietra, é a personificação canibal do capitalismo selvagem e do poder autoritário, um monstro que literalmente come gente. Ao mesmo tempo, o retrato cômico e ineficaz dos guerrilheiros urbanos revela um profundo ceticismo em relação a todos os projetos de nação.
Nós somos forçados a rir de nossa própria tragédia, uma estratégia de sobrevivência e crítica em um tempo onde a clareza podia custar a vida.
A estética do filme, com suas cores berrantes, atuações teatrais e um tom que oscila entre a chanchada e o horror, é o que torna o espelho tão deformado e tão verdadeiro. Joaquim Pedro de Andrade recusa a beleza asséptica e o heroísmo fácil. A famosa cena em que Macunaíma, negro, se banha em uma fonte e emerge branco é a mais cruel e certeira sátira do mito da democracia racial e do desejo de branqueamento que assombra o país.
O filme não tem pudor em nos mostrar um Brasil feio, mágico, violento e hilário, muitas vezes na mesma cena. Ele nos confronta com uma imagem que nós reconhecemos com desconforto e fascínio.
Ao final, o ciclo antropofágico se completa. Após sua jornada, Macunaíma é devorado pela Iara, e o Brasil, de certa forma, consome a si mesmo. O legado de “Macunaíma” é o de um cinema que entendeu que, para dar conta do Brasil, era preciso abandonar a busca por uma essência pura. A única forma de nos refletir era devorar tudo o que somos, o sublime e o terrível, e apresentar o resultado sem tempero.
É o espelho mais honesto que já tivemos, não porque mostra como somos, mas porque captura a impossibilidade de sermos uma coisa só.