“Madame Satã”: A paixão, a arte e a reinvenção do corpo negro de Karim Aïnouz

O cinema de Karim Aïnouz em “Madame Satã” (2002) não se assiste com distância, ele nos agarra pelo colarinho e nos joga no calor, no suor e na fúria da Lapa dos anos 30.

Este não é um filme biográfico convencional, é um mergulho sensorial na vida de João Francisco dos Santos, uma figura lendária do submundo carioca, e em sua explosiva transformação no artista Madame Satã. Através de uma atuação monumental de Lázaro Ramos, nós testemunhamos um ato de reinvenção radical, onde a arte e a paixão se tornam as ferramentas para forjar uma nova identidade para o corpo negro e queer, um corpo que se recusa a ser definido pela violência e pelo preconceito.

Desde a primeira cena, nós somos confrontados com a fisicalidade brutal de João Francisco. Seu corpo, em um primeiro momento, é um campo de batalha. É o corpo de um lutador, um malandro, um homem negro que precisa ser temido para sobreviver em uma sociedade racista que o marginaliza. Ele usa a agressividade como armadura, uma performance de masculinidade que lhe garante respeito nas ruas violentas da Lapa.

Karim Aïnouz nos força a sentir o peso e o poder desse corpo, sua capacidade de infligir dor, mas também a vulnerabilidade que essa couraça tenta esconder.

É no caldeirão da Lapa que esse corpo começa a se revelar em suas múltiplas facetas. O bairro filmado por Aïnouz é um personagem vivo, um labirinto de quartos apertados, bordéis e bares noturnos, um refúgio para os desajustados. Nesse ambiente, João Francisco constrói sua própria família com a prostituta Laurita e o malandro Taboo, um triângulo afetivo e sexual complexo, movido por desejo, ciúme e uma profunda lealdade. Aqui, seu corpo deixa de ser apenas uma arma e se torna um lugar de paixão e afeto. Nós vemos sua ternura como figura paterna, sua sensualidade como amante de homens e mulheres, um corpo que flui entre as categorias que a sociedade tenta lhe impor.

A reinvenção final, contudo, acontece através da arte. O grande sonho de João não é o crime ou a malandragem, mas o palco.

O desejo de se tornar um artista de cabaré é a força que o move, a promessa de um lugar onde todas as suas contradições podem coexistir e se tornar belas. A transformação em Madame Satã é um ritual de libertação. Nós testemunhamos a maquiagem, o figurino, a criação de uma nova persona que não é um disfarce, mas a mais pura expressão de sua identidade. No palco, seu corpo não é mais definido pela cor ou pelo gênero, pela violência ou pela marginalidade. Ele se torna um instrumento de glamour, poder e autoafirmação.

“Madame Satã” é, em sua essência, um filme sobre o poder de se criar.

Karim Aïnouz não nos oferece um herói de moral impecável, mas uma força da natureza que se recusa a ser contida. A paixão que o inflama e a arte que o liberta são as armas que ele utiliza para reinventar seu próprio corpo e seu próprio destino. O filme é um testamento duradouro à resiliência e à criatividade, nos mostrando que, para aqueles a quem a sociedade nega um lugar, o ato mais revolucionário é subir em um palco e apresentar ao mundo, de forma deslumbrante e sem desculpas, exatamente quem se é.

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