O cinema de terror brasileiro nasceu com um rosto, o de Zé do Caixão.
A figura genial e subversiva criada por José Mojica Marins deu ao nosso país uma mitologia de horror única, provando que nós não precisávamos de vampiros ou zumbis importados. Hoje uma nova e talentosa geração de cineastas continua esse legado, olhando para além de Zé do Caixão para encontrar novos monstros.
O mais fascinante é que esses novos monstros não vêm do inferno ou de túmulos amaldiçoados. Eles vêm da nossa própria realidade. O novo terror brasileiro usa o gênero para falar dos fantasmas sociais que realmente nos assombram, como a desigualdade, o racismo e a violência.
Essa nova onda de filmes entende que, no Brasil, a realidade muitas vezes já é um filme de terror.
Os cineastas usam lobisomens, canibais e fantasmas como metáforas poderosas para expor as feridas abertas da nossa sociedade. Em “As Boas Maneiras” (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra, uma história de lobisomem se transforma em um conto de fadas sombrio sobre a luta de classes e o racismo em São Paulo. O “monstro” nasce da relação entre a patroa branca e rica e a empregada negra e pobre, revelando as tensões da “casa grande e senzala” que ainda estruturam o nosso país.
Outros filmes mergulham na violência urbana que nós vemos todos os dias nos jornais. Em “O Animal Cordial” (2017), de Gabriela Amaral Almeida, a explosão de brutalidade dentro de um restaurante durante um assalto mostra como a paranoia e a raiva social estão presas dentro de nós, prontas para explodir a qualquer momento. Já em “Morto Não Fala” (2018), de Dennison Ramalho, um funcionário de necrotério que consegue falar com os mortos ouve os relatos das vítimas da guerra do tráfico.
Os fantasmas aqui não são assombrações distantes, são as vítimas reais da nossa violência cotidiana, e eles clamam por vingança.
O terror se torna também uma arma de crítica política afiada. Filmes como “O Clube dos Canibais” (2018), de Guto Parente, e o aclamado “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, usam o horror para atacar a elite. O primeiro mostra, de forma literal, uma classe alta que devora seus empregados para manter o poder. O segundo mistura faroeste e ficção científica para contar a história de uma comunidade esquecida no sertão que decide revidar quando se torna um alvo de caça para turistas estrangeiros com a conivência de políticos locais.
Em ambos os casos, o monstro é a classe dominante, predatória e desumana.
O que une todos esses filmes é a percepção de que o verdadeiro horror no Brasil não é sobrenatural. Os fantasmas que nos assombram não são os que arrastam correntes, mas os fantasmas da escravidão, da ditadura militar, da desigualdade abissal e da violência endêmica. São os traumas históricos que nós nunca resolvemos de verdade e que continuam a nos aterrorizar no presente.
O novo terror brasileiro tem a coragem de olhar para esses monstros de frente.
Dessa forma, o cinema de horror nacional se prova um dos movimentos mais vibrantes e importantes da nossa cultura atual. Ele vai além de Zé do Caixão não para esquecê-lo, mas para honrar seu espírito de rebeldia, aplicando-o aos medos do nosso tempo. Esses cineastas nos mostram que o terror é a linguagem perfeita para um país como o Brasil, pois nos permite falar sobre o indizível e dar forma aos demônios sociais que, muitas vezes, são bem mais assustadores do que qualquer ficção.