Existem filmes que envelhecem. E existem filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), que parecem ficar mais ferozes e atuais a cada ano que passa. A obra-prima de Glauber Rocha não é apenas um clássico do nosso Cinema Novo, mas um grito, um transe, uma febre cinematográfica que conseguiu mapear a alma e as contradições do Brasil de uma forma tão genial e brutal que, mais de meio século depois, ainda serve como um espelho assustador para o nosso presente. A fúria visionária de Glauber ainda explica o Brasil.
O filme nos joga no sertão, um cenário que é muito mais do que uma paisagem. O sertão de Glauber é uma terra mítica, queimada pelo sol, onde a miséria extrema e a beleza divina caminham de mãos dadas. É nesse palco de fome e fé que conhecemos o vaqueiro Manuel, o personagem que representa o povo brasileiro: explorado, desesperado e em uma busca cega por uma saída, por qualquer salvação que o livre de sua vida de miséria.
E é nessa busca que ele se depara com as duas saídas que, desde sempre, assombram o Brasil: a do misticismo e a da violência.
Primeiro, Manuel encontra seu “Deus”: o beato Sebastião, um líder messiânico que promete o paraíso na Terra através de uma fé cega e de rituais violentos. Ele atrai uma multidão de seguidores desesperados, oferecendo uma fuga espiritual para um sofrimento que é bem real. É impossível não ver aqui o reflexo do Brasil de hoje, um país onde líderes religiosos e políticos com discursos messiânicos ainda exercem um poder imenso sobre uma população carente, prometendo soluções mágicas para problemas complexos e, muitas vezes, levando a um beco sem saída de fanatismo e controle.
Expulso do paraíso violento de Sebastião, Manuel encontra seu “Diabo”: o cangaceiro Corisco, herdeiro do bando de Lampião. Se Deus oferecia a salvação no céu, o Diabo oferece a vingança na Terra. Corisco prega a libertação através da força bruta, da vingança contra os coronéis e da violência como única forma de justiça. Novamente, Glauber acerta no coração do Brasil, um país preso em um ciclo de violência sem fim, onde a resposta à opressão muitas vezes é mais derramamento de sangue, seja na criminalidade ou na radicalização política, um caminho que leva apenas à autodestruição.
E para garantir que nenhuma dessas forças populares (nem a fé de Deus, nem a fúria do Diabo) prospere, existe Antônio das Mortes. O matador de aluguel, braço armado dos poderosos, contratado pela Igreja e pelos latifundiários para eliminar tanto o beato quanto o cangaceiro. Ele é o símbolo do Estado e das elites, que historicamente sempre agiram com força letal para esmagar qualquer movimento popular que ameace a ordem, não importa a sua origem.
É por isso que o filme ainda grita tão alto.
O Brasil de hoje continua sendo a terra de Manuel, um povo ainda perdido entre as promessas de “deuses” salvadores e a sedução de “diabos” vingativos, enquanto os donos do poder garantem que o jogo continue sempre o mesmo. A corrida desesperada de Manuel e sua esposa Rosa em direção ao mar, no final do filme, é a imagem perfeita de um país que continua correndo sem saber para onde, fugindo de um passado brutal em busca de um futuro que nunca chega.
A frase que ecoa no filme, “a terra é do homem, nem de Deus nem do Diabo”, segue sendo o grande projeto inacabado do Brasil. A fúria de Glauber foi a de um profeta, que não apenas filmou o seu tempo, mas criou um espelho eterno e doloroso para o nosso.