O cinema de Laís Bodanzky em “Bicho de Sete Cabeças” (2000) não dialoga, ele grita.
É um grito visceral e desesperado que rasga o silêncio cúmplice em torno da barbárie manicomial, uma experiência cinematográfica que nos agarra e se recusa a nos soltar. O filme não nos convida a uma reflexão distante sobre a saúde mental, ele nos interna à força junto com seu protagonista, Neto, e nos submete à mesma lógica desumana e sufocante da instituição. Por meio de uma direção implacável e uma atuação central que se tornou um marco, Bodanzky não apenas conta uma história, mas articula um protesto furioso que ecoa como um aviso permanente contra a violência que praticamos em nome da normalidade.
A tragédia não começa com os muros do hospital, mas na incomunicabilidade do lar.
Nós testemunhamos a fissura crescente entre Neto, um jovem que encontra sua identidade no rock, na poesia e na arte, e seu pai, um homem de classe média que vê o universo do filho não como expressão, mas como desvio. O baseado encontrado no bolso do casaco é apenas o estopim. A decisão de interná-lo nasce do medo, da ignorância e da incapacidade de um pai em lidar com um filho que ele não reconhece mais. É uma falha familiar, uma terceirização da responsabilidade que entrega Neto a um sistema que não visa curar, mas apagar tudo aquilo que ele é.
Uma vez dentro do manicômio, a câmera de Bodanzky se torna nossa cela.
Com enquadramentos claustrofóbicos, uma paleta de cores doentia e um desenho de som caótico, nós somos aprisionados em um ambiente de degradação sistemática. A instituição é apresentada como uma máquina de despersonalização. As roupas de Neto são trocadas por um uniforme anônimo, seus cabelos são raspados, sua arte é confiscada. Ele é despido de sua identidade, camada por camada, enquanto o tratamento, centrado em eletrochoques punitivos e sedação massiva, busca aniquilar sua subjetividade.
Nós assistimos não a um processo de cura, mas a um projeto de quebra do espírito humano. É no corpo de Rodrigo Santoro que o grito do filme atinge sua potência máxima.
Em uma atuação de entrega física e emocional avassaladora, ele se torna a tela onde toda a brutalidade do sistema é inscrita. Nós vemos a confusão em seus olhos se transformar em terror, e o terror em um torpor vazio. Seu corpo se contorce sob o choque elétrico, sua voz é abafada pela violência e pela medicação. Quando a palavra lhe é negada e a arte confiscada, a única forma de protesto que lhe resta é a mais primal de todas, a manifestação da dor. A performance de Santoro transcende a representação, ela se torna a própria encarnação da angústia dos incontáveis jovens silenciados por essa mesma violência.
“Bicho de Sete Cabeças” é mais do que um filme, é um ato político.
Lançado em um momento crucial dos debates sobre a reforma psiquiátrica no Brasil, ele deu um rosto e uma voz à luta antimanicomial. O grito de Laís Bodanzky e de Neto não ficou confinado à tela, ele invadiu a sociedade e ajudou a impulsionar mudanças reais. Ainda hoje, a obra permanece como um soco no estômago, nos lembrando que a loucura muitas vezes não reside em quem destoa, mas em um sistema que prefere a contenção à compreensão e a brutalidade ao diálogo.