“Ilha das Flores”: O tomate, o porco e o ser humano no que se tornou a maior aula sobre o Brasil

A jornada de um simples tomate serve como o fio condutor da mais brutal e inteligente aula sobre o Brasil já filmada.

Talvez por essa precisão cortante e inesquecível, “Ilha das Flores” (1989) seja não apenas uma obra-prima, mas a maior aula sobre o Brasil. A obra de Jorge Furtado nos convida a seguir essa trajetória de forma enganosamente simples, quase como um programa educativo para crianças, com uma narração fria e um ritmo de enciclopédia. Contudo, o que se desdobra em apenas doze minutos é uma das mais contundentes e ferozes dissecações da sociedade capitalista, uma lição que usa a lógica do sistema para expor sua completa e desumana insanidade.

O método de Furtado é o que torna o curta tão genial.

A narração, em sua voz monocórdica e professoral, define tudo com uma precisão cirúrgica. Nós aprendemos o que é um tomate, o que é um japonês, o que é o dinheiro e o que é um porco. O filme constrói um universo de definições aparentemente racionais e científicas. É essa mesma lógica que ele aplica à cadeia de consumo. O tomate do senhor Suzuki tem valor, é comprado pela dona Anete, serve a um propósito. Quando uma parte dele é rejeitada, ele se torna lixo, mas mesmo como lixo, ele ainda possui uma hierarquia de valor. Ele é transportado para um criadouro de porcos em Porto Alegre, na Ilha das Flores, onde o alimento considerado adequado servirá para engordar os animais.

É neste ponto que o filme desfere seu golpe mais poderoso: Nós aprendemos que o dono da criação de porcos tem um critério.

O que serve para os porcos é separado, pois a carne do porco tem valor de troca, ela pode ser vendida. O que os porcos rejeitam, o resto do resto, é então liberado para um outro grupo. É quando a câmera nos revela as mulheres e crianças que aguardam do lado de fora da cerca. Elas são o último elo dessa cadeia alimentar perversa.

A narração, que antes nos definiu como seres humanos dotados de um telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, agora nos informa que, neste sistema específico, essas pessoas não possuem o dinheiro ou os bens de um porco. Elas valem menos.

A câmera não desvia o olhar.

Nós vemos os seres humanos, em sua maioria negros, vasculhando o lodo em busca do que os animais não quiseram, com um tempo cronometrado de cinco minutos para garantir a organização. A justaposição entre a descrição clínica de nossas capacidades cognitivas e a imagem de sua anulação pela miséria é devastadora.

O filme culmina em uma frase que ecoa por décadas: Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.

Ao nos mostrar pessoas supostamente livres, mas efetivamente aprisionadas pela fome a uma condição subanimal, “Ilha das Flores” nos força a questionar o verdadeiro significado de palavras como liberdade, dignidade e humanidade.

Ele se tornou a maior aula sobre o Brasil porque, com a trajetória de um único tomate, nos ensinou tudo sobre a nossa economia, nossa indiferença e o preço real da desigualdade.

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