“Santiago”: O ensaio de Moreira Salles e a reconstrução da memória como Ato de Criação

Um filme pode nascer de seus próprios escombros.

“Santiago” (2007) é a prova mais eloquente dessa verdade, uma obra que surge não de um projeto bem-sucedido, mas da corajosa autópsia de um fracasso. O cineasta João Moreira Salles revisitou as filmagens que havia feito treze anos antes sobre o mordomo de sua família, um homem de cultura enciclopédica e personalidade singular chamado Santiago.

O resultado é muito mais que um documentário. É um ensaio cinematográfico sobre a natureza da memória, sobre o poder e a violência da câmera, e sobre como o ato de olhar para o passado com novos olhos pode ser a mais pura forma de criação.

Nós somos confrontados com o fantasma do filme que nunca existiu. Salles nos mostra as imagens de 1992, mas sua narração confessional, melancólica e incisiva, nos impede de vê-las com ingenuidade. Ele aponta seu próprio erro como jovem diretor, sua ânsia de controlar a cena, de impor uma ordem que não era a de Santiago. Nós vemos um cineasta que interrompe seu personagem, que o sufoca com a rigidez do dispositivo documental, que tenta extrair uma verdade em vez de permitir que ela se revele. A honestidade de Salles em expor suas falhas transforma o material. As imagens deixam de ser um retrato de Santiago para se tornarem um testemunho da relação complexa e desigual entre quem filma e quem é filmado.

Ao mesmo tempo, nós descobrimos que Santiago não era um sujeito passivo. Ele era, em sua própria maneira, o curador de si mesmo.

Um homem que passou a vida organizando o mundo em listas, catálogos e árvores genealógicas, tentando impor uma ordem aristocrática a uma vida de servidão. Para a câmera, ele não apenas fala, ele performa. Ele declama textos, recria momentos e tenta dirigir sua própria imagem, legar ao mundo o retrato de um homem culto e refinado. O filme se revela então como um embate silencioso entre duas vontades, a do diretor atrás das câmeras e a do diretor de si mesmo que estava à sua frente. Nenhum dos dois venceu em 1992, e é por isso que o projeto foi abandonado.

A verdadeira criação acontece treze anos depois, no ato de reencontro com esse material agora transformado pela morte de Santiago e pela maturidade do cineasta. Salles entende que a memória não é um registro fiel do passado, mas um material bruto, fragmentado e subjetivo. Ao editar as velhas imagens com sua nova compreensão, ele não está simplesmente “corrigindo” um erro. Ele está criando uma obra inteiramente nova. O filme se torna uma reflexão sobre como as histórias são contadas e como as vidas são lembradas.

A reconstrução da memória, tanto a de Santiago quanto a do próprio Salles sobre o processo de filmagem, torna-se o próprio gesto artístico.

“Santiago” nos ensina que às vezes a representação mais fiel não é a que busca uma verdade objetiva, mas a que admite a impossibilidade dessa busca. Ao construir um filme sobre a falha em fazer um filme, João Moreira Salles oferece a Santiago o monumento mais digno e complexo que poderia existir.

Ele não nos entrega um retrato perfeito do mordomo, mas nos envolve no processo de tentar entendê-lo, mostrando que a memória não é algo que se encontra, mas algo que se constrói, dolorosa e belamente, a partir dos fragmentos que o tempo nos deixa.

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