Existem filmes que servem como cápsulas do tempo, nos mostrando um passado distante e superado. E existem filmes que funcionam como um espelho, refletindo o nosso próprio presente com uma clareza desconfortável.
O documentário soviético “O Fascismo de Todos os Dias” (1965) pertence assustadoramente a essa segunda categoria. Mais do que uma aula de história sobre a Alemanha Nazista, o filme do diretor Mikhail Romm é um ensaio psicológico sobre como a maldade se torna banal e como sociedades inteiras podem ser seduzidas pela tirania. E o seu alerta nunca foi tão urgente.
O que torna este documentário tão diferente e poderoso é a sua abordagem. Em vez de nos apresentar a historiadores explicando eventos, Romm utiliza quase que exclusivamente imagens de arquivo, muitas delas filmadas pelos próprios nazistas, desde propagandas oficiais até filmes caseiros. Sobre essas imagens, ouvimos a narração do próprio diretor. Sua voz não é a de um professor distante, mas a de um homem inteligente, irônico e profundamente triste, que conversa conosco, faz perguntas e nos guia através do absurdo.
O foco do filme não são as batalhas ou as estratégias, mas sim a pergunta que mais importa: como isso foi possível? Como milhões de pessoas comuns abraçaram uma ideologia de ódio?
A resposta está no título: o fascismo “de todos os dias”.
A genialidade de Romm foi mostrar que o horror não começou nos campos de concentração e sim na vida cotidiana. O filme dedica grande parte de seu tempo a mostrar a banalidade do mal: crianças sendo ensinadas a saudar o líder antes mesmo de aprender a ler, multidões em ginásticas coletivas perfeitamente sincronizadas, a cultura do desprezo aos mais fracos, o culto a um ideal de beleza e força, e a alegria forçada e fabricada em desfiles monumentais.
Ele nos mostra como o fascismo invade a cultura, a arte, a educação e as famílias, envenenando cada aspecto da vida até que o impensável se torne normal.
E é exatamente aqui que o filme deixa de ser uma peça de museu e se torna um espelho para o nosso presente. As ferramentas de manipulação que “O Fascismo de Todos os Dias” expõe continuam assustadoramente atuais e reconhecíveis. O culto ao líder carismático que se apresenta como o único salvador da nação; a propaganda incessante que cria uma narrativa de “nós contra eles”, demonizando minorias, intelectuais e a imprensa, o uso de grandes espetáculos e comícios para gerar uma emoção coletiva que esmaga o pensamento individual, e o ataque à ciência e à complexidade em favor de slogans simples e soluções fáceis.
Acima de tudo, o filme nos alerta sobre o perigo da conformidade e da apatia. Ele mostra que o fascismo não precisa que todos sejam monstros sádicos. Ele precisa apenas que pessoas comuns se acostumem com a crueldade, repitam o discurso de ódio sem pensar e, o mais importante, fiquem em silêncio por medo ou por conveniência. O fascismo não chega de repente com tanques na rua, mas se infiltra aos poucos, no discurso que desumaniza o vizinho, na piada que normaliza o preconceito e na decisão de não se importar.
“O Fascismo de Todos os Dias” é um filme essencial porque funciona como uma vacina contra a amnésia histórica. Ele nos lembra que o fascismo não é um monstro do passado, mas um vírus recorrente que se alimenta do medo, da ignorância e do desejo humano por respostas simples.
A mensagem final não é de desespero, mas de responsabilidade. É uma tarefa de “todos os dias” que cidadãos comuns se mantenham vigilantes, pensem criticamente e defendam a humanidade e a decência que o fascismo sempre tentará destruir.