Vittorio de Sica foi o poeta das pessoas comuns. Ele não estava interessado em heróis, vilões ou histórias de glamour. Sua câmera buscava o trabalhador, o aposentado, a criança, o desempregado… E em todas as suas histórias, ele fazia uma pergunta fundamental: o que resta a uma pessoa quando a vida lhe tira quase tudo? A resposta era sempre a mesma: a luta pela própria dignidade.
Para De Sica, a dignidade não era ter dinheiro ou poder. Era algo muito mais simples e profundo: era o direito de ser tratado com respeito, de poder sustentar a família e de não ser invisível para a sociedade. Seus filmes mais famosos são aulas sobre essa batalha.
Para contar essas histórias, ele se tornou um dos pais do que viria a se tornar o Neorrealismo Italiano. E isso era, basicamente, um jeito novo de fazer cinema, que rompia com a falsidade de Hollywood. As regras eram simples:
Filmar nas ruas de verdade: Nada de estúdios. A cidade, com suas feridas do pós-guerra, era o cenário.
Usar pessoas comuns: Em vez de atores famosos, ele escalava gente do povo, porque acreditava que eles traziam uma verdade que nenhum ator profissional conseguiria imitar.
Contar histórias reais: Os roteiros eram sobre os problemas do dia a dia, como desemprego, pobreza, solidão, injustiça…
Esse estilo era a ferramenta perfeita para buscar a emoção crua e a dignidade de seus personagens.
A dignidade de um pai em “Ladrões de Bicicleta” (1948)
Este é talvez o filme mais famoso do De Sica e a expressão perfeita de sua busca. A história é dolorosamente simples: em uma Roma destruída pela guerra, Antonio Ricci, um pai de família desempregado, consegue um emprego para colar cartazes. A condição é que ele tenha uma bicicleta. Com muito sacrifício ele recupera a sua, que estava penhorada. Mas, no seu primeiro dia de trabalho, a bicicleta é roubada.
O resto do filme é a busca desesperada de Antonio e seu filho pequeno, Bruno, pela bicicleta. Mas a busca é por algo muito maior:
A bicicleta não é só uma bicicleta – Ela representa esperança, o pão na mesa, a chance de ser um provedor. É o símbolo da dignidade de Antonio como trabalhador e pai.
A jornada com o filho – A parte mais comovente é ver a relação dos dois. O pai tenta manter a força na frente do filho, mas a vergonha e o desespero o consomem. E o pequeno Bruno vê o seu herói, o seu pai, desmoronar aos poucos.
A perda da inocência – O momento mais terrível é quando Antonio, no auge do desespero, pensa em roubar outra bicicleta. É o ponto em que ele corre o risco de perder não só o emprego, mas a sua própria honra na frente do filho.
O filme nos deixa com o coração na mão porque nos faz sentir a humilhação e a luta daquele homem para simplesmente continuar sendo um homem digno.
A dignidade na velhice em “Umberto D.” (1952)
Se “Ladrões de Bicicleta” é sobre a dignidade do trabalhador, “Umberto D.” é sobre a dignidade na velhice. Dizem que este era o filme preferido do De Sica e é fácil entender o por quê.
A história acompanha Umberto, um funcionário público aposentado que não consegue pagar o aluguel com sua mísera pensão e está prestes a ser despejado. Seu único amigo no mundo é seu cachorrinho, Flike.
A luta de Umberto é silenciosa e solitária. Ele tem vergonha de pedir esmola, tenta vender seus livros, procura um lugar para deixar seu cão. O que o filme mostra é a batalha de um homem para não ser tratado como um objeto inútil, para não ser descartado pela sociedade depois de uma vida inteira de trabalho.
Umberto não quer caridade, ele quer o respeito que merece. Sua briga é para continuar existindo aos olhos do mundo. E a relação com Flike é o coração do filme. O cachorrinho é a única coisa que impede Umberto de desistir de tudo. É o seu último laço de afeto, o que mantém sua humanidade viva. Cuidar de Flike é a sua última missão digna.
O grande legado de Vittorio De Sica é o seu olhar de profunda compaixão. Ele filmava seus personagens sem julgamento, mostrando suas falhas e sua grandeza. Seus filmes são um soco no estômago, mas também um abraço, pois nos lembram da importância de olhar para o outro com empatia.
Aprendi que as maiores batalhas da vida muitas vezes não são por riqueza ou as glórias mundanas, mas pela simples e fundamental dignidade humana, e acho que essa é uma lição que o cinema nunca vai esquecer.