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Cinema Francês, Todos

Amélie Poulain: A revolução silenciosa dos pequenos gestos

O que acontece se a maior revolução do nosso tempo não for barulhenta, mas sim silenciosa, anônima e escondida em gestos triviais? Esta é a verdadeira provocação de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001), um filme que nos atrai com uma Paris perfeitamente colorida de vermelhos e verdes apenas para nos desarmar e sugerir algo muito mais profundo. Nós somos levados a acreditar que assistimos a um conto de fadas moderno, mas estamos diante de um manifesto sobre o poder individual em um mundo desencantado, um filme que nos mostra como o acolhimento e as pequenas gentilezas são, na verdade, os verdadeiros direcionadores de uma vida com significado. O filme nos mostra que a bondade calculada, a intervenção discreta na vida do outro, é uma forma potente de combater o cinismo e a solidão que definem a nossa era, transformando o ordinário em extraordinário. A direção de Jean-Pierre Jeunet utiliza o artifício, a extrema saturação das cores e a coreografia dos movimentos de câmera, não como um fim em si mesmo, mas como o veículo necessário para esta revolução silenciosa. A Paris que vemos não é real, e essa é exatamente a intenção, pois o filme opera no campo da possibilidade, do “e se?”. Nós observamos Amélie orquestrando suas intervenções, como o gnomo viajante que reconecta seu pai ao mundo ou a vingança meticulosa contra o quitandeiro Collignon, e percebemos que a estética de conto de fadas serve para proteger a fragilidade desses atos de pura gentileza. Em um mundo cínico e realista, talvez eles fossem inúteis, mas no universo de Amélie, eles ganham o peso de milagres seculares, provando que a mudança começa na menor das escalas. O filme captura, talvez melhor que qualquer outro do início do século XXI, o paradoxo da solidão na era da conexão. Amélie, assim como o “Homem de Vidro” Raymond Dufayel, é uma espectadora da vida, isolada por suas próprias neuroses e pelo medo do contato direto. A revolução que ela inicia é, primeiramente, uma forma de praticar o acolhimento sem se expor diretamente, de tocar o mundo através de um filtro seguro. O que nós testemunhamos é uma jornada terapêutica, onde os pequenos gestos de reparação que ela oferece aos outros, como o encontro arranjado entre Georgette e Joseph, são, na verdade, ensaios para sua própria cura, uma forma de usar a gentileza como ferramenta para entender o mundo antes de ousar participar dele. A maior prova de que não estamos apenas em um território de fantasia é o pavor que Amélie sente do contato direto, algo que um conto de fadas tradicional simplesmente ignoraria. A sua jornada com Nino e o álbum de fotos rasgadas é o ponto onde a revolução silenciosa precisa se tornar audível, onde o gesto precisa ser direcionado a si mesma. O filme argumenta que, embora possamos transformar o mundo ao nosso redor com intervenções anônimas, a felicidade completa exige o risco da vulnerabilidade, provando que a gentileza, para ser completa, precisa ser uma via de mão dupla. A estratégia dos pequenos gestos, tão eficaz para os outros, encontra seu limite, e ela precisa da ajuda de Dufayel, o homem que ela mesma ajudou, para entender que ela também merece o acolhimento que tanto distribui. Por fim, Amélie Poulain nos deixa com uma lição de poder que é frequentemente esquecida na nossa busca por soluções grandiosas. Nós somos lembrados de que o acolhimento e a gentileza, mesmo quando disfarçados de travessura, são uma força política. O filme de Jeunet celebra a ideia radical de que o mundo não é mudado por grandes eventos, mas pela soma impossível de calcular de ações minúsculas, anônimas e profundamente humanas. A revolução de Amélie é silenciosa porque não precisa de palcos ou discursos, ela apenas precisa acontecer, um gesto de cada vez, provando que a gentileza pode ser a forma mais potente de fazer do mundo um lugar melhor. Dedicado ao meu amigo Paulo Alves, cujos gestos gentis são luzes aos meus dias escuros.

Cinema Americano, Todos

A essência do amor no caos

E se pudéssemos apagar a dor de um amor perdido como quem deleta um arquivo corrompido do computador, nos livrando de toda a angústia para recomeçar com uma tela em branco? Essa é a promessa tentadora que move a jornada de Joel Barish em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), um filme que, ao explorar a tecnologia da amnésia seletiva, nos revela uma verdade paradoxal e profundamente humana, a de que a verdadeira essência do amor não reside na perfeição ou na ausência de dor, mas precisamente no caos inseparável das memórias que tecem uma conexão real. A tentativa de Joel de impor uma ordem clínica ao seu sofrimento o lança numa odisseia desesperada pelo labirinto de sua própria mente, onde ele descobre que cada momento de felicidade com Clementine está irremediavelmente soldado a um instante de frustração, e que a tentativa de apagar um significa aniquilar o outro. A direção de Michel Gondry transforma o cenário mental de Joel em uma paisagem viva e em desintegração, utilizando uma gramática visual que é a própria manifestação do caos da memória. Nós somos jogados em cenas que se dissolvem, em cenários que encolhem e em conversas que ecoam fora de sincronia, não como um mero artifício estilístico, mas como a representação fiel de como a memória afetiva realmente funciona, um emaranhado de sensações, fragmentos e emoções que se sobrepõem sem qualquer lógica linear.  A cinematografia instável e os efeitos práticos nos forçam a sentir a desorientação de Joel enquanto ele percebe que suas lembranças não são arquivos organizados em pastas, mas um ecossistema vivo e interdependente, onde a alegria de um dia na neve sobre o rio congelado só existe porque também existe a amargura de uma briga banal na volta para casa, e é nessa totalidade confusa que a alma do relacionamento deles respira. A jornada de Joel se transforma, então, em uma rebelião contra sua própria decisão, uma corrida frenética para salvar Clementine do apagamento que ele mesmo contratou.  É nesse momento que o filme aprofunda sua tese, pois ao tentar esconder sua amada nos recantos mais absurdos de sua mente, como em memórias de infância onde ela não pertence, Joel não está apenas salvando a imagem dela, mas sim a integridade de sua própria identidade. Nós compreendemos que as experiências dolorosas, as falhas de comunicação e as imperfeições de Clementine não eram bugs no sistema de seu amor, mas características essenciais que o tornavam único e valioso.  A dor, nesse contexto, deixa de ser um inimigo a ser eliminado e se revela como o tecido conjuntivo que dá profundidade e significado à alegria, provando que um amor sem suas cicatrizes é apenas uma abstração vazia. Ao nos apresentar essa narrativa, o filme se conecta a um debate filosófico atemporal sobre a natureza do ser e a importância da experiência acumulada, dialogando com a ideia de que somos a soma de nossas vivências, tanto as gloriosas quanto as miseráveis.  Em uma sociedade cada vez mais obcecada por soluções rápidas e pela fuga do desconforto, a história de Joel e Clementine serve como um poderoso manifesto contra a cultura da assepsia emocional, nos lembrando que a complexidade e a contradição não são falhas a serem corrigidas, mas a própria matéria-prima da vida e dos laços que formamos. O procedimento, que promete paz, na verdade oferece o vazio, e a resistência de Joel é a afirmação de que uma vida com a memória da dor é infinitamente mais rica do que uma existência sem memória alguma. O verdadeiro brilho do filme, e a confirmação final de sua tese, reside em sua conclusão agridoce e corajosa, quando Joel e Clementine, agora cientes de todo o caos que seu relacionamento pode gerar novamente, decidem conscientemente tentar mais uma vez. Aquele “ok” trocado entre os dois não é um sinal de otimismo ingênuo, mas um ato de aceitação radical, um reconhecimento de que o amor verdadeiro não é encontrar a pessoa perfeita, mas abraçar a jornada imperfeita com a pessoa escolhida.  Eles escolhem o caos em vez da ordem estéril, a possibilidade da dor em vez da segurança do nada, e ao fazerem isso, nos ensinam que a essência do amor é, no fim das contas, a disposição para navegar repetidamente pela desordem, encontrando beleza não apesar das falhas, mas por causa delas.

Cinema Italiano, Todos

“O Evangelho Segundo São Mateus”: A heresia sagrada de Pasolini e o retrato de um Jesus Revolucionário

Queria trazer aqui uma reflexão: talvez a heresia mais profunda seja aquela que nasce não da negação, mas de uma fidelidade tão literal e feroz que se torna perigosa para a própria ortodoxia? Este é o terreno onde Pier Paolo Pasolini, um poeta marxista e ateu, ergueu seu monumento cinematográfico, “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964), um filme que se recusa a tratar Cristo como uma figura de vitral e o devolve à poeira da história como um revolucionário como nunca se viu na história da humanidade. A grandiosa heresia sagrada de Pasolini consiste precisamente nisto: em desnudar o evangelho de séculos de verniz dogmático para nos mostrar que a mensagem de Jesus, quando levada a sério, é menos um consolo para a alma e mais um chamado radical à insurreição contra a ordem estabelecida. Para Pasolini, a revolução de Cristo não poderia ser filmada nos estúdios de Hollywood, mas sim nas paisagens áridas e pobres do sul da Itália, utilizando como atores os rostos sofridos de camponeses e operários locais. Nós somos confrontados não com a beleza idealizada de um messias europeu, mas com a figura intensa e por vezes ríspida de um homem do povo, cuja santidade emana diretamente de sua imersão na miséria humana. A câmera, quase sempre na mão e seguindo a estética do neorrealismo, não busca a composição perfeita ou o enquadramento divino, mas a verdade crua do momento, capturando a fúria nos olhos de Jesus ao expulsar os vendilhões do templo como se fosse a raiva de um líder sindical contra os exploradores de sua gente. A escolha por essa estética não é um mero artifício, mas o próprio argumento do filme, pois ao situar a narrativa sagrada na realidade material do subproletariado, Pasolini nos obriga a enxergar o evangelho como um manifesto político pela libertação dos oprimidos. Esta abordagem se conecta de maneira visceral com todo o projeto intelectual e artístico de seu diretor, um homem que passou a vida obcecado pelas culturas marginalizadas, vendo nelas uma pureza e uma força espiritual que o mundo burguês havia destruído. Em Jesus, Pasolini não encontrou a figura fundadora da Igreja Católica com a qual mantinha uma relação de profundo antagonismo, mas sim o último expoente de um mundo místico e popular, um profeta cuja pregação contra a riqueza e o poder ecoava as suas próprias convicções marxistas. Dessa forma o filme se torna um ato de apropriação ousado, um resgate do Cristo histórico para o lugar dos grandes rebeldes da humanidade, transformando o Sermão da Montanha menos numa promessa celestial e mais num programa terreno de justiça social, onde os pobres não são apenas bem-aventurados, mas os verdadeiros agentes da transformação histórica. A genialidade de Pasolini se revela ainda na forma como a trilha sonora universaliza essa luta específica, criando sons que transcendem o tempo e o espaço da Judeia antiga. Nós ouvimos a solenidade da Paixão Segundo São Mateus, de Bach, se misturando com a dor ancestral de um spiritual cantado por Odetta e com a vibração de uma missa congolesa, e nesse choque de culturas, percebemos que a história contada na tela não é um evento isolado. A jornada de Cristo, em sua fúria contra a hipocrisia e em sua defesa intransigente dos despossuídos, torna-se um arquétipo para todas as lutas por dignidade ao longo da história, conectando a Palestina do século I à América da segregação racial e à África pós-colonial. A música funciona como um argumento paralelo, afirmando que o espírito revolucionário encarnado por este Jesus é uma força universal e atemporal. Ao final, o que torna “O Evangelho Segundo São Mateus” uma obra tão duradoura e inquietante é justamente o fato de que sua fé não reside na divindade de Cristo, mas na potência subversiva de suas palavras. Pasolini, o não crente, acabou por realizar um dos filmes mais espiritualmente honestos sobre o tema porque se recusou a domesticar a figura de Jesus, preferindo abraçar sua complexidade como um homem cuja mensagem de amor era também uma declaração de guerra contra a injustiça. Nós somos deixados com a imagem de um Cristo que caminha pela terra não para nos salvar para outro mundo, mas para nos incitar a transformar radicalmente este, uma heresia que, paradoxalmente, talvez nos coloque mais perto do cerne da mensagem evangélica do que qualquer interpretação piedosa jamais conseguiu.

Cinema Italiano, Todos

“A Vida é Bela”: A fábula, o Holocausto e a polêmica que dividiu a Crítica mundial

Nenhum filme talvez tenha caminhado de forma tão perigosa e apaixonada na linha tênue entre o sublime e o ofensivo quanto “A Vida é Bela” (1997). A audaciosa aposta de Roberto Benigni foi usar as ferramentas da comédia e da fábula para contar uma história ambientada no coração da escuridão do século XX, um campo de concentração nazista. O resultado é uma obra que encantou milhões e ofendeu outros tantos, um filme que nos força a fazer uma pergunta fundamental e desconfortável. Existe uma forma “correta” de representar o horror absoluto? Ao transformar o Holocausto em um jogo de faz de conta, Benigni criou um dos mais belos testamentos ao amor paterno ou cometeu uma irresponsável trivialização da história? A estrutura do filme é a chave para entender sua proposta e sua polêmica. A primeira metade é uma comédia romântica vibrante, quase um conto de fadas. Nós somos apresentados a Guido, uma figura que parece saída da Commedia dell’Arte, um homem que conquista sua “princesa” Dora com uma energia contagiante e uma imaginação que dobra a realidade a seu favor. Benigni nos seduz com um mundo de cores quentes e humor inocente, enquanto as sombras do fascismo crescem nas bordas da tela, como uma nota dissonante que aos poucos se torna a melodia principal. Essa longa introdução nos ensina a acreditar na lógica de Guido, uma lógica onde o amor e a fantasia são as forças mais poderosas do universo. É essa mesma lógica que ele carrega para dentro do abismo. Quando Guido e seu filho Giosuè são deportados para o campo de concentração, ele toma uma decisão radical. Para proteger a inocência do menino, ele usa sua arma mais potente, a imaginação, e constrói uma ficção elaborada. O campo de concentração se torna o cenário de um jogo complexo, cujo prêmio final para quem fizer mil pontos é um tanque de guerra de verdade. Cada brutalidade do cotidiano do campo é traduzida por Guido em uma regra do jogo. A fome, os guardas, o medo da câmara de gás, tudo é reemoldurado por uma narrativa fantástica que funciona como um escudo para a psique da criança. Nesse ponto, a polêmica se instala. Por um lado, nós testemunhamos um dos mais comoventes atos de amor já filmados. Vemos um pai que, diante do mal absoluto, se recusa a deixar que esse mal contamine a alma de seu filho. O filme se torna uma ode à resiliência do espírito humano e à capacidade da fantasia de nos manter vivos. Por outro lado, críticos do mundo inteiro questionaram a validade moral dessa abordagem. Ao filtrar o horror inexprimível do Holocausto através da lente de um jogo, Benigni não estaria suavizando a realidade, tornando-a palatável e, portanto, diminuindo a verdadeira dimensão do sofrimento? Para muitos, a ideia de encontrar beleza ou humor em um campo de extermínio é uma impossibilidade ética. “A Vida é Bela” sobrevive e provoca até hoje porque não oferece uma resposta fácil para essa questão. A aposta de Benigni é total, e ele a leva até as últimas consequências, caminhando como um palhaço para a própria execução a fim de manter a integridade do jogo para seu filho. O filme não argumenta que o Holocausto foi um jogo, mas sim que, para uma criança sobreviver, um pai precisou fingir que era. A imagem final de Giosuè gritando “Vencemos!” a bordo de um tanque americano não é a celebração de uma vitória sobre o nazismo, mas a vitória da fábula de um pai. A polêmica que o cerca não é um defeito, mas a prova de sua força. É um filme que nos obriga a confrontar os limites da representação, deixando-nos para sempre a debater se sua bela mentira foi um ato de sublime humanidade ou um perigoso esquecimento.

Cinema Brasileiro, Todos

“Ilha das Flores”: O tomate, o porco e o ser humano no que se tornou a maior aula sobre o Brasil

A jornada de um simples tomate serve como o fio condutor da mais brutal e inteligente aula sobre o Brasil já filmada. Talvez por essa precisão cortante e inesquecível, “Ilha das Flores” (1989) seja não apenas uma obra-prima, mas a maior aula sobre o Brasil. A obra de Jorge Furtado nos convida a seguir essa trajetória de forma enganosamente simples, quase como um programa educativo para crianças, com uma narração fria e um ritmo de enciclopédia. Contudo, o que se desdobra em apenas doze minutos é uma das mais contundentes e ferozes dissecações da sociedade capitalista, uma lição que usa a lógica do sistema para expor sua completa e desumana insanidade. O método de Furtado é o que torna o curta tão genial. A narração, em sua voz monocórdica e professoral, define tudo com uma precisão cirúrgica. Nós aprendemos o que é um tomate, o que é um japonês, o que é o dinheiro e o que é um porco. O filme constrói um universo de definições aparentemente racionais e científicas. É essa mesma lógica que ele aplica à cadeia de consumo. O tomate do senhor Suzuki tem valor, é comprado pela dona Anete, serve a um propósito. Quando uma parte dele é rejeitada, ele se torna lixo, mas mesmo como lixo, ele ainda possui uma hierarquia de valor. Ele é transportado para um criadouro de porcos em Porto Alegre, na Ilha das Flores, onde o alimento considerado adequado servirá para engordar os animais. É neste ponto que o filme desfere seu golpe mais poderoso: Nós aprendemos que o dono da criação de porcos tem um critério. O que serve para os porcos é separado, pois a carne do porco tem valor de troca, ela pode ser vendida. O que os porcos rejeitam, o resto do resto, é então liberado para um outro grupo. É quando a câmera nos revela as mulheres e crianças que aguardam do lado de fora da cerca. Elas são o último elo dessa cadeia alimentar perversa. A narração, que antes nos definiu como seres humanos dotados de um telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, agora nos informa que, neste sistema específico, essas pessoas não possuem o dinheiro ou os bens de um porco. Elas valem menos. A câmera não desvia o olhar. Nós vemos os seres humanos, em sua maioria negros, vasculhando o lodo em busca do que os animais não quiseram, com um tempo cronometrado de cinco minutos para garantir a organização. A justaposição entre a descrição clínica de nossas capacidades cognitivas e a imagem de sua anulação pela miséria é devastadora. O filme culmina em uma frase que ecoa por décadas: Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. Ao nos mostrar pessoas supostamente livres, mas efetivamente aprisionadas pela fome a uma condição subanimal, “Ilha das Flores” nos força a questionar o verdadeiro significado de palavras como liberdade, dignidade e humanidade. Ele se tornou a maior aula sobre o Brasil porque, com a trajetória de um único tomate, nos ensinou tudo sobre a nossa economia, nossa indiferença e o preço real da desigualdade.

Cinema Italiano, Todos

“Feios, Sujos e Malvados”: A Comédia Grotesca de Ettore Scola e a humanidade esquecida nas favelas de Roma

O cinema italiano sempre soube rir das próprias desgraças, mas nenhum filme levou essa ideia a um extremo tão chocante, repulsivo e genial quanto “Feios, Sujos e Malvados” (1976). O diretor Ettore Scola, conhecido por suas crônicas melancólicas da burguesia, desce aqui ao inferno, a uma favela na periferia de Roma, para nos apresentar a um retrato de família que desafia todos os limites. É uma comédia grotesca, um soco no estômago que nos faz rir de culpa para, no fim, nos forçar a enxergar a humanidade esquecida que a sociedade prefere varrer para debaixo do tapete. O filme nos joga, sem qualquer preparo, dentro de um barraco imundo onde vive a gigantesca família Mazzatella. São quatro gerações de gente amontoadas em um espaço sufocante, em meio a ratos, lixo e uma miséria moral ainda maior que a material. O centro desse universo caótico é o patriarca Giacinto, interpretado de forma monstruosa e inesquecível por Nino Manfredi. Tirano, alcoólatra e com um olho só, ele guarda com violência um milhão de liras que ganhou de um seguro, enquanto sua família, com filhos, netos, noras e genros, passa os dias planejando formas de roubá-lo ou envenená-lo para botar as mãos no dinheiro. A comédia de “Feios, Sujos e Malvados” não é feita de piadas, mas do absurdo da depravação. Scola filma o grotesco sem filtros, mostrando tentativas de assassinato durante o almoço, relações incestuosas, traições e uma falta de higiene que quase podemos sentir o cheiro. Nós rimos do plano ridículo de colocar veneno de rato na macarronada do patriarca, mas o riso engasga na garganta. Esse humor que dói é a principal ferramenta do diretor. Ao nos fazer rir do que é horrível, ele quebra o nosso conforto e nos torna cúmplices, nos obrigando a questionar por que achamos graça em uma tragédia tão profunda. Onde está a humanidade que o título da análise promete? É exatamente essa a pergunta que Scola quer que nós façamos. Ao mostrar essa família como um bando de animais selvagens, ele não está zombando dos pobres. Pelo contrário, ele está apontando um dedo acusador para a sociedade que os criou. A monstruosidade da família Mazzatella é um reflexo direto da monstruosidade de um sistema (o do “milagre econômico” italiano) que produziu riqueza para alguns e deixou uma massa de esquecidos para trás, vivendo em condições sub-humanas. Eles são feios, sujos e malvados porque foram abandonados pela política, pela Igreja e pela sociedade. A humanidade esquecida deles não está na bondade ou na nobreza, que a miséria extrema lhes roubou. Está na sua vitalidade crua e incontrolável. Eles gritam, brigam, traem, amam de forma torta e, acima de tudo, sobrevivem. Há uma força de vida absurda naquele barraco, um instinto de perseverança que o mundo limpo e educado da burguesia talvez já tenha perdido. No meio de toda a sujeira, a vida continua explodindo, com um novo bebê nascendo na cena final, garantindo a continuidade daquele clã esquecido. “Feios, Sujos e Malvados” é um filme difícil, que se recusa a romantizar a pobreza. Ele a mostra como algo que degrada, que desumaniza e que transforma a luta pela vida em uma guerra de todos contra todos. Scola não nos pede para gostar da família Mazzatella. Ele apenas nos proíbe de virar o rosto. Ao nos forçar a encarar o grotesco, ele comete um ato político, nos lembrando que essa humanidade esquecida existe e que a sua condição é a grande ferida moral da sociedade que se considera civilizada.

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